
Chamei o encanador pra consertar o aquecedor a gás. Sempre dá problema.
Ele veio. Seu Alfredo é um homem simples. Chegou de máscara, no fim do dia, depois de, segundo ele, ter atendido a outras duas casas que relataram urgência.
– Me perguntei, dona. Urgência pra quê com esse calorão, né? Não que eu não me sinta agradecido por essas urgências. É disso que eu vivo e com isso criei meus filhos. Mas, pra senhora vou dizer. Que calor é esse? No meu tempo de vivência, já pra mais de 60 anos, tenho sentido mais calor. Não sou bobo. A senhora já pensou em trocar esse aquecedor por aquecimento solar?
– Já, já pensei, mas me disseram que não é boa a incidência do sol aqui.
– Bobagem. Pesquisa mais com quem sabe mais. Todo dia o sol derrama essa energia abençoada e tão pouca gente aproveita. Passou da hora de algumas atitudes. Parece coisa do velho testamento, mas eu vou enfileirar as pragas que estão prevendo aí: fuga em massa de gente com fome de um continente pro outro, falta de água, água cara, cidade de praia engolida pelo mar, floresta virando deserto. Minha filha contratou um desses canais que paga pra ver. Filme não gosto muito não. Gosto de documentário.
– O senhor me dá licença um minutinho que eu preciso atender ao telefone. .. Pronto, não era nada. Telemarketing
– Incomoda, não é? Sempre querendo vender alguma coisa. Onde é que o planeta aguenta tanta fábrica, tanta peça nova. Eu, aqui, faço o que é possível pra reaproveitar. E reciclo lixo. No meu bairro não tem coleta, mas eu guardo pra um amigo que trabalha com isso. Tem uma kombi, leva, vende, aproveita. Mas então, dizia pra senhora. Gosto é de documentário.
E dizia isso enquanto desmontava a válvula e apertava uns canos.
– No fundo do mar, tem morte de corais – retoma ele. Vou pra praia, à vezes. Olhar onda não é ver o fundo. É um mundo, né? Em meses, aquele monte de coral colorido que é uma pintura embranquece e morre de calor. Não percebe? Vi isso no documentário. Olha eu sou cascudo, mas quase choro quando vejo aquela beleza toda morrendo. A senhora veja, o filme lá foi lançado em 2017. Não quero nem pensar no que já aconteceu nos últimos 3, 4 anos, desde que fizeram aquelas imagens lá. Não tá mais quente mesmo?
– Pois é, seu Alfredo. Eu também vi esse documentário. Não conviver com os corais dá um certo benefício ignorante, uma desculpa pra não pensar o tempo todo neles. Menos tristeza. Ainda tem o desmatamento aqui no Brasil, o garimpo em terra indígena. Eu sei. Todo mundo sabe. Não dá pra negar nem fingir que não existe. A gente não vê nenhuma medida séria pra reverter a mudança climática.
– E a senhora viu que inventaram de tapar o sol com poeira? Tão querendo despejar poeira no universo pro sol esquentar menos.
– Sim, seu Alfredo. E endinheirados fora de órbita querem ocupar Marte porque logo, logo aqui não vai dar mais.
– A senhora tem filhos?
– Um. E dois enteados. Sua água, seu Alfredo.
– Obrigado. Dão trabalho?
– Gosto de me ocupar deles. Dão o trabalho que filhos dão. Mas já estão criados.
– Na casa que eu acabei de sair, a mulher gritava que gritava com o filho. Não conversou comigo não. E eu pensando: esse menino precisa é de amor.
– É sim, seu Alfredo. Gente, bicho, a Terra. Tá tudo precisando de amor, não é?
– Eu digo pra senhora. Hoje eu tô aqui, ganhando meu dinheiro honesto. Mas se dificultar – e dobrou o braço encostando na orelha direita, como se aninhando – não me apego a nada. Esse aqui é meu travesseiro. Vivo com pouco. Vivo com menos ainda. Que calorão. Tô suando. Eu trabalho pra dar uma vida melhor pros meus filhos. A gente faz o que pode. Mas, dona, e o mundo que a gente vai deixar pra eles? E os meus netos?
– Também me preocupo, seu Alfredo. Olho meus filhos e quero preservar, plantar árvores, salvar espécies. Em vez de ocupar Marte, não é mais fácil, acessível, geograficamente lógico, mais barato e menos arriscado cuidar da Terra? Já não devíamos estar fazendo isso há muito, muito tempo?
– O mundo sabe o que tem que ser feito, dona. Falta fazer. Mas, quem sabe esse ano vai ser melhor que o ano passado, e o próximo melhor ainda?
Sorri por receber o otimismo desconcertante do seu Alfredo, que percebeu e também sorriu. Sorriso cúmplice por trás das máscaras.
Falou que tava pronto. Testou o equipamento. Ofereci uma sopinha gelada de beterraba pra espantar o calor que eu ia servir no jantar. Se afastou, tomou a sopa. Gostou. Perguntou como eu fazia.
– Assim, seu Alfredo. Plantei a beterraba, plantei o gengibre. A terra – redonda, certo? – segue generosa, apesar dos maltratos.
Outro dia precisei de novo do seu Alfredo pra consertar um vazamento. O aquecedor segue bem. Liguei no celular. Não atendeu. Liguei no outro número, o fixo. A moça atendeu e eu perguntei por ele.
– Ih, dona, meu pai morreu. Covid. Faz uma semana.
Assinalei uma cruz ao lado do nome dele anotado na agenda da cozinha. Rezei por ele, rezei pra São Francisco proteger a Terra.
Com esse calor todo, o bafo quente da realidade fazendo suar, incomodando, escandalosamente alertando eu saio do desalento compartilhando a receita animadora e refrescante que seu Alfredo experimentou. Pra concorrer com muita coisa que não tá fácil de engolir.
Receita de sopa fria de beterraba
INGREDIENTES
4 beterrabas
1 cebola grande
1 talo de salsão
2 colheres de manteiga
1 fio de azeite
gengibre
sal
pimenta
caldo de legumes (opcional)
MODO DE PREPARO
Cozinhe as beterrabas com casca. Para mais sabor, acrescente um talo de salsão ao cozimento.
Assim que estiverem bem macias, retire do caldo, descasque, corte cada beterraba em cruz e reserve.
Pique a cebola grosseiramente.
Numa panela, deite um fio de azeite, duas colheres de manteiga e refogue a cebola até que fique transparente. Acrescente pedaços de gengibre. O suficiente pra trazer uma leve ardência. Junte a beterraba, refogue um pouco mais e acrescente à panela do refogado ou caldo de legumes ou a própria água do cozimento da beterraba, até cobrir.
Mantenha em fogo baixo por 15 a 20 minutos. Retire do fogo e bata no liquidificador.
Em seguida, passe o creme por uma peneira e devolva à panela para finalizar o tempero com sal e pimenta do reino moída na hora.
Espere esfriar, leve à geladeira e deixe lá pra ficar geladinho.
Na hora de servir, em tigelas ou xícaras individuais, acrescente uma colher de iogurte natural em cada porção. Aí são duas opções: bata com um aramado, se quiser incorporar ou só acrescente a colherada de iogurte e deixe o contraste branquinho. Salpique tomilho fresco.
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