PUBLICIDADE

Os sentidos, o tempo e o pão de fermentação natural

Os sentidos, o tempo e o pão de fermentação natural

 

Acordo, no meio da noite, com textos em elaboração. Vem uma frase e se dissipa, parágrafos inteiros são construídos entre o sono e a vigília. Durmo de novo e a manhã resgata uma vaga  lembrança do texto que eu construía. No mais, perdi. Passei assim os últimos meses, com textos, letras, tudo solto em mim, sem uma conclusão.

Não deu tempo, porque não dei meu tempo para a escrita. Fiquei entre o trabalho intenso, o cuidado com a casa, estudos, filho, marido, cansaço, esparsos encontros, notícias, escolhas. Preservei o amálgama literário em algum canto, na distração, no travesseiro, na invasão da manhã que logo se atropelava no dia inteiro.

Pra tudo, casa, estudos, filho, marido, cansaço, notícia, trabalho, precisava dedicar tempo. Tempo parecido precisam precisam farinha e água pra um encontro e uma transformação, processo químico, fermentação. Nesse tempo ausente, a cozinha foi sempre um lugar. O pão, fermentado naturalmente, ia pro forno pelo menos uma vez na semana na sexta, que termina com a sagrada noite do vinho. Nesse tempo ausente, perdi um fermento, fiz outro.  Na pressa, perdi massa. Não respeitei o tempo do processo. Na pressa, um sinal tímido e ainda imberbe de fermentação da massa, da massa já me impelia à sova. Bobagem. O pão vinha, sim, não traidor, mas imponente e sábio. Assim não cresço. Assim, não cresce. Assim não fica bom.

Então, mais tentativas. Fazer pão é assim mesmo. A espera, a ansiedade, a crença.

Mas acima de tudo, a espera, o respeito, o tempo.

Vamos aos sentidos.

O azedo do fermento é aromático, atraente. Notar o ar se desprendendo em bolhas ainda aderentes à massa é uma vitória. Esse é o ponto. Observar. 

Conquistado o fermento, ele pode ser seu pra sempre. Basta alimentá-lo com farinha e água.

E é dessa fonte que vão brotar os futuros pães. A cada fornada, um novo preparo.

O pré-fermento, a mistura das farinhas e do sal até sentir na palma da mão a maciez, a lisura da superfície amassada com alguma força delicada, a sova. Depois, uma pausa, de novo a espera, o respeito, o tempo. 50 minutos entre a sova e a primeira dobra, e mais 50 minutos entre outras duas dobras.  Passo a massa para uma bancada enfarinhada, mantenho a dobra para baixo, e modelo o pão girando a massa da esquerda pra direita, utilizando as mãos e o antebraço  Um movimento cadenciado, em que a massa sai da mão esquerda, passa pro antebraço direito e vai rolando até chegar à mão direita que,  carinhosamente, devolve pra mão esquerda para repetir o processo.

Várias vezes, até obter uma superfície lisa e homogênea. Jogo a massa com a dobra virada para cima num cesto natural, forrado com um pano de prato enfarinhado, que também o encobre, deixando espaço pra respirar.  O cesto vai pro armário ou pro forno desligado, por 2 horas, pra última fermentação. O quanto ele vai crescer depende do clima do dia, do calor da cozinha.

Vou lá ver se tá bonito, se cresceu e colocar pra assar.

Aqueço o forno a 250 graus. Já coloco uma panela de ferro ou de barro com tampa lá dentro. É nessa “forma”que o pão vai assar.

Assim que o forno estiver bem quente e a panela também, uso luvas, tiro a panela do forno e numa sequência rápida, destampo a panela, jogo farinha na base, e viro a massa de pão na panela. Com uma lâmina fininha, faço um corte horizontal na massa do pão, levemente, afundando só um pouquinho, borrifo um jatinho de água (às vezes, não, confesso), tampo a panela e levo pro forno.

A temperatura deve ser de 250 graus nos primeiros 20 minutos. Depois desse tempo, baixo a temperatura para 220, tiro a tampa e deixo o pão dourar.

Retiro do forno e da panela. Outra vez, calma. Ele precisa descansar por pelo menos uma hora – de preferência 2 horas – sobre uma grade antes de ser consumido. Nesse tempo, o cozimento continua. Sabores complexos vão aparecer nesse resfriamento. Garanto.

Nessa caminhada entre o levain e o pão prontinho, algumas descobertas:

O pão de fermentação natural deve ser sovado uma única vez.

Depois do primeiro descanso da massa, melhor não perder as bolhas de ar que se criaram lá dentro. Então, as próximas dobras serão apenas dobras, não sovas.

Se você conseguir que a massa cresça lindamente, não se empolgue muito. Não deixe crescer demais porque, no calor do forno, vai desmoronar.

O cesto de palha (ou mesmo um chapéu de praia) é melhor do que uma vasilha de inox ou uma tigela de vidro pra última fermentação.

O pano de prato dedicado a envolver o pão no cesto não precisa ser lavado com frequência. Nem deve.

Panela de barro cumpre muito bem o papel de forma. Vale a pena.

Nas minhas pesquisas, que envolveram clássicos padeiros nacionais e internacionais, dicas de internet, minha mãe que contou como a vó Noêmia fazia pão e livros de receitas, encontrei diversas origens para o fermento: farinha branca e água, farinha integral e água, farinha, água e suco de abacaxi, farinha, água e suco de maracujá, farinha, água e iogurte natural.  Confie. Você vai achar o seu rumo.

Desde que descobri o pão de fermentação natural, faço pelo menos uma vez por semana.

Uma vez, fiz a massa, pus no cesto e rumei pra Minas, pra ver minha mãe. Três horas de viagem. A massa cresceu no carro. Cheguei e assei. É um presente e tanto ver a família rasgando o pão. Jantamos com ele.

Quase sempre fica bom. Às vezes, falho. Se ele fica meio duro, faço bruschettas. Outra opção é rabanada salgada com tomates. Maravilhosas.

Nas vezes que acerto – e não são raras –  acerto tanto que bastam o pão, o azeite e o vinho.

Receita de Fermento Natural

Via de regra, conceber o fermento natural é mais ou menos assim:

DIA 1
– 50 g de farinha de trigo branca
– 60 ml de suco de abacaxi ou de água

Mistura bem. Vai ficar parecendo uma pasta.

Cobre com pano de prato, abriga num armário, livre de luz e vento e deixa lá guardadinho, por dois dias (48 horas)

Duvido que você não vá dar uma olhadinha pra ver se já começou a brotar bolhinhas. Tá liberado. Porque, cá entre nós, é uma conquista. É vida microscópica brotando por nossas mãos.

DIA 3

Depois de 48 horas, vamos “alimentar” nosso futuro fermento:

Acrescente:
– 30 g de farinha
– 20 ml de líquido (água ou suco)

Cobre de novo com o pano, volta pro armário

Dia seguinte, vá dar uma olhadinha. Tá esquisita, meio mole. Pode mexer a massinha, pra oxigenar.

DIA 5

Hora de alimentar:
– 50 g de farinha
– 30 ml de água (nesse ponto, mesmo se você optou por suco no começo, use água agora)

DIA 6

Se essa mistura já fermentou, o que significa que, visualmente tá cheia de bolinhas de ar e o cheiro que exala já não é mais só de farinha, mas algo um pouco alcoólico, então, estamos no caminho. Coração palpita.

Pega metade da mistura, acrescenta meia xícara de farinha de trigo e 2 colheres de sopa de água.

Misture bem. A massa fica mais seca e você vai moldar uma bolinha.

Reserve por mais 24 h.

Se tudo der certo, essa bolinha compacta vai aerar nesse tempo, fermentar.

DIA 7

Hora de pegar essa base e novamente misturar com água e farinha.

Assim:
– 100 g de fermento (que você conquistou)
– 200 g de água
– 300 g de farinha

Deixa essa massa descansar de 8 a 12 horas

Preparo do Pão com Fermentação Natural

Na noite anterior à feitura do pão, faça o pré-fermento.

Numa vasilha funda, misture:
– 50 g de farinha de trigo branca
– 150 g de farinha de trigo integral
– 100 ml de água
– 50 g de fermento natural

Cubra com pano de prato úmido e deixe em temperatura ambiente por 12 horas para ativar a fermentação.

Basicamente, para o pão a proporção é:
– 200 g de fermento natural
– 400 ml de água
– 600 g de farinha
– E sal.

Pra provar que são muitas tentativas, erros e acertos, vou transcrever aqui duas anotações do meu caderno de receitas, do jeitinho que eu registrei:

Incansável pão feito num dia úmido e quente:
– 100 g de fermento natural
– 1 colher (sopa) de iogurte natural (dá uma forcinha na fermentação)
– 350 ml de água
– 250 g de farinha, integral e branca, um blend

Deixa fermentar entre 3 e 4 horas. Depois, mais 250 g de farinha, de novo integral e branca.

Sal (uma colher de chá)

Mistura pra primeira sova. Descansa na vasilha por 45 minutos. Tira, molda, coloca no cesto de pano. Descansa 2 horas.
Forno a 250 nos primeiros 20 min, 220 nos últimos 20 min.

Ficou lindo!

A massa fermentou e cresceu bem rápido. Fiz o pão no mesmo dia.

Outro:
– 100 g de fermento natural
– 350 ml de água
– 250 g de farinha branca

Descansa essa mistura entre 8 e 10 h  (enquanto eu trabalhava).

Fim do dia, mais 250 g de farinha, sal, sova. 45 min de descanso.

Dobra 1, dobra 2, geladeira

Assei no dia seguinte.

Foto: Debbie Widjaja on Unsplash

Comentários
guest

0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
Notícias Relacionadas
Sobre o autor
PUBLICIDADE
Receba notícias por e-mail

Digite seu endereço eletrônico abaixo para receber notificações das novas publicações do Conexão Planeta.

  • PUBLICIDADE

    Mais lidas

    PUBLICIDADE