Informações detalhadas sobre a situação trágica vivida pelo povo Yanomami, em Roraima, estão sendo reunidas pela APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, em um documento que será encaminhado ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, e anexado à denúncia feita pela mesma organização, em agosto de 2021, que tem 150 páginas.
A cada seis meses, a APIB atualiza esse documento (que tem quase 150 páginas e já alertava que a política de genocídio dos povos indígenas no Brasil estava em curso) com um relatório que apresenta novas informações.
Foi assim em dezembro de 2021 (quando a denúncia foi ampliada, incluindo o avanço do desmatamento e a invasão das terras indígenas por garimpeiros), em 13 de junho (denunciou o caso de Bruno Pereira e Dom Phillips e a omissão do governo; seus corpos ainda não tinham sido encontrados) e é assim agora.
A notícia sobre o novo documento foi divulgada ontem pelo jornalista Jamil Chade, colunista do UOL, – que contou que o processo está sendo elaborado e pode “levar algumas semanas para ser completado” -, e lista evidências sobre o plano do governo Bolsonaro que levou à crise sanitária e humanitária em que se encontra o povo Yanomami, que reforça a acusação de genocídio.
Segundo Jamil, para que um crime seja considerado como tal, “deve atender os seguintes critérios:
- O autor infligiu certas condições de vida a uma ou mais pessoas;
- Essa pessoa ou essas pessoas pertencia(m) ou pertence(m) a um grupo nacional, étnico, racial ou religioso particular;
- O autor agiu com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso enquanto tal;
- As condições de vida – que podem incluir, mas não se restringem à privação deliberada de recursos indispensáveis à sobrevivência, tais como água, comida e serviços médicos – foram afetadas calculadamente para levar o grupo à destruição; e
- Os atos se deram no contexto de um padrão de conduta semelhante dirigida contra o grupo ou a conduta era tal que podia causar por si mesma a destruição”.
Por que tanta demora do TPI?
Desde agosto de 2019, o ex-presidente vem sendo alvo de denúncias no Tribunal Penal Internacional. A última foi protocolada em novembro de 2022. Falamos respeito de todas, aqui no site, inclusive sobre uma carta com petição e complementos que foram enviados à essa corte durante três anos.
Jamil conta que a corte ainda “não tomou uma decisão se abre oficialmente um inquérito contra Bolsonaro” porque “está avaliando as informações recebidas”. E que é possível que a procuradoria do TPI “opte por unificar todas as informações submetidas por diferentes grupos brasileiros e estrangeiros para avaliar se existe uma base razoável para abrir uma investigação”.
E ainda é preciso avaliar se o “suposto crime é de competência do TPI. Nessa etapa prévia, é realizada a análise sobre critérios de admissibilidade e se a investigação servirá aos interesses da Justiça” conta em seu artigo.
É preciso levar em conta, também, que, por ano, a corte de Haia recebe entre 700 a 800 denúncias de todo o mundo. Mas não percamos as esperanças. Jamil destaca que, “para observadores internacionais, as imagens de crianças em estado avançado de desnutrição, os dados de mais de 570 mortes em quatro anos e a explosão da maláriapodem ampliar a pressão para que o Tribunal dê seguimento ao processo”.
8 denúncias contra Bolsonaro na corte internacional
Dos oito processos protocolados no TPI contra o ex-presidente, cinco estão em avaliação preliminar de jurisdição. Na verdade, um deles (o terceiro da lista) já foi descartado e se referia à conduta do ex-presidente na pandemia.
Assinado por mais de um milhão de profissionais de saúde, movimentos sociais e entidades internacionais e apresentado em julho de 2020 ao TPI, acusava Bolsonaro de negligência: “falhas graves e mortais no combate à pandemia de covid19“.
Na época, estávamos próximos de 90 mil óbitos e mais de 2,4 milhões de casos diagnosticados no país, imagina! E também sem ministro da saúde, depois das passagens turbulentas de Luiz Henrique Mandetta e Nelson Taich pela pasta.
Mas a procuradoria do TPI não aceitou a denúncia e declarou que iria aguardar até que surgissem novas evidências. Estamos perto de 700 mil brasileiros mortos por covid19: para ser exata, 696.376.
A seguir, veja todos os processos abertos no Tribunal Penal Internacional contra Bolsonaro, em ordem cronológica, por meio das reportagens publicadas pelo Conexão Planeta:
Agosto 2019 (denúncia 1, por juristas)
Juristas se unem para pedir investigação de Bolsonaro na Corte Internacional por crimes contra a humanidade: Os incêndios na Amazônia foram a gota d’água para que advogados decidissem protocolar ações contra o presidente no tribunal de Haia, inclusive por crime de ecocídio.
Novembro 2019 (denúncia 2: Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e pela Comissão Arns)
Bolsonaro é denunciado no Tribunal Internacional de Haia por ‘crimes contra a humanidade’ e ‘incitação ao genocídio de povos indígenas’
Julho 2020 (denúncia 3: por profissionais de saúde, na pandemia)
Profissionais de saúde denunciam Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional por genocídio e crime contra a humanidade: Endereçado à procuradora-geral do Tribunal, Fatou Bensouda, a denúncia foi assinada por mais de um milhão de profissionais da saúde e seus sindicatos (cerca de 60 instituições), além de movimentos sociais e entidades internacionais. Eles acusavam o presidente de negligência e “falhas graves e mortais no combate à pandemia de Covid-19“. Este foi o processo recusado pelo TPI.
Dezembro 2020 (a denúncia 2 é examinada no TPI)
Denúncia contra Bolsonaro por incitação ao genocídio dos povos indígenas é examinada na Corte de Haia: A denúncia feita em novembro de 2019, acatada pelo órgão internacional, diz respeito às ameaças constantes do governo aos povos originários. Caso seja aceita, ocorrerá o julgamento. Esta notícia é muito auspiciosa visto que o tribunal recebe cerca de 800 casos por ano.
Janeiro 2021 (denúncia 4, por Raoni e Almir Suruí)
Os caciques Raoni e Almir Suruí denunciam Bolsonaro no Tribunal de Haia por crimes contra a humanidade: Com o apoio do advogado francês William Bourdon, especialista em direitos humanos (ele defende Edward Snowden e Julian Assange), neste documento, os líderes indígenas acusam o presidente de extermínio desses povos, também na pandemia, e por sua política antiambiental, pleiteando que seja condenado pelo crime de ecocídio.
Março 2021 (atualização sobre a denúncia 2)
Denúncia contra Bolsonaro por ‘crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio dos povos indígenas’ avança no Tribunal de Haia: O processo protocolado em novembro de 2019 foi formalmente aceito para análise mais aprofundada pela procuradoria.
Agosto 2021 (denúncia 5: APIB)
Povos indígenas denunciam Bolsonaro por genocídio no Tribunal Penal Internacional, de Haia
Eles aguardaram o dia 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, para – pela primeira vez, protocolarem uma denúncia direta nessa corte, representados pela APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e seus advogados indígenas.
Neste documento – que será atualizado, em breve e pela 3ª vez, com a tragédia dos Yanomami (como contei acima) -, Bolsonaro é acusado de extermínio e perseguição a povos indígenas por meio de um “ataque generalizado e sistemático, bem como a imposição de outros atos inumanos, tipificados respectivamente como genocídio e crimes contra a humanidade pelo Estatuto de Roma”.
De acordo com a APIB, os discursos de Bolsonaro contra os povos indígenas e a demarcação de suas terras foram constantes – inclusive durante sua campanha presidencial – e tiveram consequências imediatas e nefastas, entre elas:
– em 2019 (de janeiro a setembro), foram registrados 160 ataques a terras indígenas, 51 a mais que em todo o ano de 2018 (governo Temer), de acordo com o Conselho Indigenista; e
– “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” se intensificaram: de 109 casos registrados (2018), saltou para 256 casos em 2019: um crescimento de 135%!
Outubro 2021 (denúncia 6, liderada pela organização AllRise)
’O Planeta contra Bolsonaro’: organização de advogados europeus denuncia o presidente na corte internacional de Haia: De autoria da AllRise, o documento tem 300 páginas e, além de argumentos legais, apresenta dados científicos. Acompanha petição.
Fevereiro 2022 (denúncia 7: integrantes da CPI da COVID)
Tribunal Penal Internacional, em Haia, recebe denúncia de senadores da CPI da Covid contra Bolsonaro: “É mais um passo fundamental no combate à impunidade. O nosso trabalho continua! Não iremos descansar até que a Justiça seja feita”, declarou o senador Randolfe Rodrigues. No mesmo dia em que recebeu e-mail da Corte Internacional confirmando o recebimento da denúncia, Rodrigues, Omar Aziz e Renan Calheiros cobraram, do STF e da PGR, a continuidade das investigações.
Maio 2022 (carta e petição)
Organizações entregam petição com 1 milhão de assinaturas ao Tribunal de Haia e cobram investigação sobre denúncias contra Bolsonaro: Advogados e ativistas entregaram carta à corte internacional – acompanhada de petição com 1 milhão de assinaturas – para cobrar rapidez na análise das denúncias, destacando que a destruição da Amazônia, promovida por ele, não só ameaça os povos indígenas (que vivem e cuidam da floresta), mas o clima do mundo, condenando os 8 bilhões de seres humanos que vivem na Terra, em especial as gerações futuras.
Junho 2022 (complemento da denúncia da APIB)
APIB leva o caso de Bruno Pereira e Dom Phillips e a omissão do governo ao Tribunal Penal Internacional, de Haia: Esta ação da APIB é o segundo relatório que complementa a denúncia feita pela organização, na mesma Corte, em agosto de 2021. Além do caso de Bruno e Dom, são destacadas no documento: a invasão dos garimpeiros em terras Yanomami e a política anti-indígena do governo que transformou a Funai e outros órgãos em inimigos desses povos.
Novembro 2022 (denúncia 8: por 3 organizações socioambientais)
Organizações ambientalistas pedem ao Tribunal Penal Internacional que investigue ‘crimes contra a humanidade’ cometidos na Amazônia: A ação movida pelas organizações socioambientais Climate Counsel (sem fins lucrativos, com sede em Haia, formada por ex-advogados da ONU dedicados à justiça ambiental e climática), Greenpeace Brasil e Observatório do Clima (coalizão que reúne 77 organizações basileiras), fornece evidências de que uma rede organizada de políticos, servidores públicos, policiais, empresários, entre outros criminosos, realiza ataques generalizados e sistemáticos na região amazônica contra usuários de terras rurais, comunidades tradicionais e povos indígenas. Nos últimos 10 anos, houve mais de 12 mil conflitos por terra ou água na região, que atingiram níveis extremos com Bolsonaro.
Denúncias também na ONU
Por fim, vale lembrar que as denúncias feitas contra Bolsonaro em Haia se somam a outras tantas, realizadas em diversos fóruns internacionais, que se tornaram rotina para a diplomacia do país desde que este sujeito assumiu o poder.
Só em 2019, foram registradas mais de 35 queixas formais contra ele na ONU, entre elas a de enfraquecer órgão de combate à tortura, como noticiamos aqui.
Que bom que isso ficou no passado. E, agora, com o novo governo, podemos ter alguma esperança de reconstruir o que foi aniquilado por Bolsonaro, resgatar a dignidade tão aviltada do povo brasileiro e fortalecer a democracia.
Que o genocida, que sequestrou a presidência em 2018, pague por todos os seus crimes – com ou sem TPI -, entre eles, o de tentar exterminar os Yanomami – na verdade, todos os povos indígenas – do território brasileiro.
Como declarou a ministra Sonia Guajajara no dia de sua posse: “Nunca mais um Brasil sem nós!”. Nunca mais.
Por fim, assista ao vídeo em que o advogado Eloy Terena – que, na época, atuava na APIB e, hoje, é secretário executivo do Ministério dos Povos Indígenas – fez, em novembro de 2022, quando participava de reunião sobre direitos humanos na ONU, em Genebra, que avaliava o Brasil.
Foto (destaque): Victor Moriyama, Instituto Socioambiental
Que maravilhosa notícia! Adorei.