
Quando ela chega em casa, só percebo a silhueta. Ela vem uma vez por semana. Às vezes, uma vez a cada 15 dias. Bate na porta, abro e escuto o “Boa tarde, tudo bem?”.
A voz é suave, quase baixa. E muito segura.
– O que trouxe hoje?
Ela estende o prato na minha direção. Sinto um cheiro fresco. Levo a mão até a comida, levanto o papel toalha, apalpo o conteúdo. Lambuzo a ponta do dedo com azeite, afundo um pouco numa textura macia, fria, lisinha.
– É a berinjela? Com ricota?
– Isso. O rolinho que você gosta. Facinho. Nem precisa de talher.
Mas lambuzei a mão.
– Joguei pesto com hortelã ralinho por cima. – E ri – Lambe.
– Lambi.
– Vem. Quero te mostrar as orquídeas. Traz o prato.
– Abriram?
Ela vai na frente. Cheira a banho recém tomado. Sabonete cítrico.
Eu cultivo orquídeas no alpendre. Cuido delas muito bem. Ludisia, Paphiopedilum, Phalaenopsis, catltleya, laelia, mas eu prefiro chamar de pipoca, sapatinho, borboleta, chuva de ouro…
Tenho a memória de todas as matizes. Sempre perdia tempo admirando a paleta, a delicadeza, a força e o formato. Taí uma coisa da qual não me arrependo de ter feito enquanto a vista era boa. Eu olhava orquídeas com atenção. Agora que elas florescem tão perto de mim, sinto, afago, deslizo, tateio, cheiro, roço meu rosto. Não vejo as cores.
– Conta pra mim. Como estão? Floridas, não é? Descreve. Devagar.
– Roxa, lilás, magenta, amarelíssima.
A voz dela escorre pela varanda, atravessa meus olhos turvos e eu vou recriando a aquarela. A memória é mais colorida do que minha vida. Eu sei do contorno e a voz dela fala do preenchimento. Toco o vestido macio que ela usa. Passo o braço sobre o ombro. Acarinho a manga fluida. Imagino estampas. Sinto a mão macia pousar sobre a minha perna.
A descrição segue…
– Sabe a orquídea chocolate? A cor é terrosa, vinho, ocre, do miolinho bem perto da haste desdobra uma segunda flor que é uma saia branca, com risquinho em toda volta. Essa você sabe que abriu, né? Sabe o que eu vejo quando olho pra ela? Bonequinhos de gengibre Aquele formato de uma pessoa de braços e pernas abertos…
E continua…
– Mas vou te confessar. Primeiro, achava que essa florzinha escancarada assim, era um parto. Um bebê saído da mulher agora. Mas aí me deu pena pensar no bebê por tanto tempo dependurado. Então, passei a pensar essa orquídea como uma imagem floral de varonia, dos deuses da fertilidade. Min, o egípcio ereto. As poderosas esculturas pré-colombianas, onde o homem exibe o pinto duro ao lado da mulher que abriga um cesto entre as pernas. Receptáculo. Nada sutil. Mas o meu preferido é Príapo, do pênis engraçado de tão grande e sempre exposto. Príapo cabe ainda mais a essa orquídea porque, diz a mitologia, era guardião de vinhedos e jardins. Espantava mau-olhado.
O silêncio vindo dela é raro. Ocupa o espaço por um breve tempo. Breve.
– Sorte sua ter uma dessa no orquidário.O que você não vê tá tão lindo que atiça inveja, sim. Então, decidi: é um homem de braços e pernas abertos. E do meio das pernas desabrocha bem aberta uma flor dadivosa, volumosa pra uma orquídea, de uma sensualidade, até masculinidade mesmo explícita.
Ela tem essas liberdades comigo. Fala assim, de pênis, de erotismo sem rodeios. Imagino a flor, os falos e rio. Tenho até estátuas diminutas do casal pré-colombiano aqui em casa.
– Do cheiro não preciso dizer nada. Sente?
– Sinto. Sinto mais ainda agora que você me pede pra olhar pra ela.
Suspirou. Pegou um rolinho de berinjela do prato. Levou até minha boca. Os dedos ficaram lambuzados. Lambi.
Receita de rolinho de berinjela com ricota
INGREDIENTES
2 berinjelas médias
300g de ricota fresca
2 colheres de iogurte natural ou coalhada (pode substituir por requeijão, se preferir)
noz moscada a gosto
sal a gosto
azeite pra grelhar a berinjela
Para o molho, ver receita de pesto. Pra essa receita, acrescente folhas de hortelã – que vão dar mais frescor – mais azeite. Queremos apenas um toque leve sobre a berinjela.
MODO DE PREPARO
Fatie a berinjela no sentido do comprimento (é mais fácil com fatiador de legumes ou mandolina).
Espalhe as fatias sobre uma tábua, salpique sal, cubra com papel toalha e deixe desidratar por uma hora ou mais.
Retire da tábua, seque, leve para uma frigideira quente com um fio de azeite, doure por 1 minutinho de cada lado. Retire do fogo e deixe esfriar.
RECHEIO
Junte a ricota, a coalhada (ou iogurte natural ou requeijão) e faça uma pasta homogênea, sem deixar aglutinada demais. Tempere com sal e noz moscada. Pode acrescentar folhas picadas de manjericão ou hortelã na pasta.
Pegue pequenas porções para rechear cada fatia de berinjela: sobre a fatia aberta, coloque a porção na ponta e enrole suavemente. Mais uma dica: o rolinho ganha crocância se você finalizar o recheio com uma folha de rúcula bem fresca e fechar.
Arrume numa travessa. Ao final, regue com fios de pesto.
Cubra com papel toalha e visite alguém. Deixe na soleira da porta, no parapeito da janela. Visita mesmo só depois que o isolamento acabar.
Saúde! Amor!
Foto: domínio público/pixabay