Nos últimos dias, uma sensação de déjavù, de estar voltando a situações já vividas, me dominou ao ler notícias e manifestações em redes sociais sobre retrocessos previstos no revogaço da legislação de saúde mental anunciado pelo governo federal.
A nossa Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras drogas, reconhecida internacionalmente pela ONU como modelo a ser seguido por outros países, é fruto de ampla mobilização da sociedade civil, realizada a partir da Reforma Psiquiátrica.
Substituiu o internamento de pessoas em manicômios – onde eram submetidas a tratamentos terríveis, em condições desumanas, apartadas do convívio em sociedade – pelo atendimento nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), Serviços Residenciais Terapêuticos, Centros de Convivência e Cultura, Unidades de Acolhimento e leitos em hospitais gerais.
A abordagem promove o atendimento integral no lugar da internação compulsória, e a emancipação social no lugar do enclausuramento, priorizando o respeito à autonomia, o cuidado, o trabalho em rede e a inserção social.
Retrocessos nessa política rondam nosso horizonte com mais força desde 2017 quando, também em dezembro, Ministério da Saúde, Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e Federação das Comunidades Terapêuticas se movimentaram para desconfigurar a Política Nacional de Saúde Mental. Escrevi sobre isso aqui, no Conexão Planeta.
Agora, mais uma vez, vemos notícia de uma nova estocada da ABP, que propõe a revisão da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e um modelo assistencial em saúde mental que prevê a revogação de quase uma centena de portarias – entre as quais as que criam as equipes de Consultório de Rua, Serviço Residencial Terapêutico e Unidade de Acolhimento.
Também propõe a revisão dos financiamentos dos Caps, a criação de ambulatórios gerais de psiquiatria e, pasmem, a criação de unidades especializadas em emergências psiquiátricas e a revogação do programa de reestruturação da assistência psiquiátrica hospitalar no SUS (Sistema Único de Saúde).
Assim, uma mesma associação, de novo, tenta mudar, na marra, uma política que foi construída progressivamente, avançando em todos os governos pós-constituição com ampla participação da sociedade brasileira.
A estocada vem sem audiência pública, sem passar pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), num período de recesso do Legislativo e do Judiciário e, claramente, favoreceria a indústria de leitos e ambulatorização.
Repúdio e ação da sociedade civil
O Conselho Nacional de Saúde emitiu a nota #NenhumPassoAtrás, na semana passada, na qual repudia a proposta, destacando os ataques que a Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas vem sofrendo desde a sua elaboração:
“… aprofundados nos últimos cinco anos por meio do desmonte da Raps e do fortalecimento de políticas segregadoras, marcadas pela ascensão das comunidades terapêuticas e a edição de normativas e de financiamento público voltados à internação da população em situação de rua e de adolescentes. Isso desconsidera o processo histórico e político-legislativo de avanços de uma política desinstitucionalizadora e antimanicomial, conquistada por ampla mobilização e participação social”.
A nota destaca, ainda, a importância de evitar retrocessos no atual contexto de crise econômica e sanitária trazido pela pandemia da Covid-19, em que milhões de pessoas perdem suas vidas, vivenciam processos de adoecimento, desemprego, precarização do trabalho e outras dificuldades, o que agrava as questões de saúde mental e amplia as necessidades de cuidado.
“As instâncias do controle social, como fiscalizadoras das políticas públicas, lutam por democracia e participação social e representativa nas discussões de qualquer política que se relacione com o Estado e que venha a ser executada. Reafirmamos uma posição contrária às investidas de retrocesso e “modernização” de velhas instituições e práticas que ameacem a dignidade humana, os direitos humanos e o cuidado em liberdade no campo da saúde mental e atenção psicossocial”, aponta a comunicação do CNS.
Mobilização: petição online, passeata e documento
Os profissionais do Grupo de Trabalho em Saúde Mental do Laboratório de Educação Profissional em Atenção à Saúde, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, unidade técnico-científica da Fundação Oswaldo Cruz, lançaram uma petição online que visa chegar a 100 mil assinaturas. Está quase lá.
De 9 a 11 de dezembro, a Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) promove o 7º Congresso Brasileiro de Saúde Mental. Faz parte da programação a Passeata Virtual Pela Vida: em defesa do SUS e da Reforma Psiquiátrica, promovida também pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), que será transmitida pelo youtube e outras redes da Associação.
As duas organizações assinam também o documento Memorial: Retrocessos no cuidado e tratamento de saúde mental e drogas no Brasil, que sistematiza o conjunto de decretos e portarias que evidenciam a ruptura com o marco legal e todo o processo de regulamentação da Política Nacional, evidenciando como o Brasil vem atuando, desde 2017, pela regressividade dos direitos trazidos por ela.
De olho nos retrocessos de direitos humanos
A Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas é sustentada por quatro Conferências Nacionais de Saúde, pela Lei nº 10.216/2001 e pela Lei Brasileira de Inclusão, sendo reconhecida internacionalmente como referência de reestruturação da assistência em saúde mental, pautada na atenção comunitária e territorial, em uma rede pública de serviços diversificados e atuação multiprofissional.
As tentativas de retrocesso desse modelo sinalizam que os interesses de mercado, para este governo e para as entidades que a ele se associam, estão acima dos direitos humanos. Lembro aqui que, historicamente, muitos dos empreendimentos da economia solidária que conheço estão ligados à Rede de Saúde Mental e Economia Solidária.
A estruturação de empreendimentos baseados em cooperativismo social e economia solidária, que promovem a inclusão pelo trabalho, tem sido ponto importante dentro da Política Nacional de Saúde Mental. Surgem a partir de oficinas terapêuticas dentro dos Caps ou de outros equipamentos com essa mesma lógica.
Aqui, em São Paulo, existem os pontos Butantã e Benedito, por exemplo, que comercializam a produção de empreendimentos de economia solidária e oferecem serviços como loja, livraria e restaurante que são operacionalizados por grupos solidários da saúde mental.
Em Guarulhos, há o Projeto Tear. Em Botucatu, o Café da Loucura, Em Belo Horizonte, o Bar Suricato. Só para citar alguns dos empreendimentos sobre os quais já contei aqui.
Mudar esse modelo é negar a pessoas em sofrimento mental a chance de se associarem cooperativamente e de se inserirem na sociedade enquanto cidadãos. É mais um dos vários retrocessos em direitos humanos que sofremos neste governo. Sigamos atentos!
Edição: Mônica Nunes
Foto: Hoshino Ai/Unsplash