*Texto atualizado em 03/11/23
Na manhã dessa sexta-feira, o Conexão Planeta recebeu uma nota enviada pela assessoria de comunicação do Ministério do Meio Ambiente afirmando que o Ibama e ICMBio não foram consultados sobre o envio de araras brasileiras a um zoológico da Índia e que esses órgãos são completamente contra a comercialização das espécies (leia mais aqui).
Abaixo segue texto original da reportagem.
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Na semana passada, a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) trouxe à tona a denúncia sobre a venda de 26 ararinhas-azuis e quatro araras-azuis-de-lear para o Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom, zoológico que está sendo construído na Índia e promete ser o maior do mundo (leia mais aqui).
Ambas as aves são endêmicas do Brasil, ou seja, não existem na natureza em nenhum outro lugar do mundo. Apesar do programa em andamento de reintrodução da ararinha-azul (Cyanopsitta spixii) e do nascimento dos primeiros filhotes no Refúgio de Vida Silvestre, em Curaçá, a espécie ainda continua considerada extinta na vida selvagem. Já a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) está na categoria “em perigo de extinção”, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Apesar disso, 30 aves foram comercializadas com o zoológico indiano pela Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP), um criadouro de aves da Alemanha, parceiro do governo brasileiro no programa de reprodução e reintrodução da ararinha-azul na Bahia.
Desde que foi feita a denúncia pela Renctas há poucos dias, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) ainda não se pronunciou sobre o assunto.
O Conexão Planeta entrou em contato com a assessoria de imprensa do Ibama/Ministério do Meio Ambiente no dia 27 de outubro e até agora não obteve retorno.
Integrantes e instituições participantes do Programa de Manejo Integrado da arara-azul-de-lear também pediram uma reunião urgente com representantes do ministério e não receberam resposta.
Além disso, o governo federal ainda não se pronunciou sobre sua posição diante da proposta para incentivar o comércio internacional dessas araras brasileiras, que será discutida na Suíça na semana que vem. O assunto está na pauta da próxima reunião da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção (CITES), que acontecerá em Genebra, entre 6 e 10 de novembro.
A recomendação para o estímulo à comercialização das araras brasileiras, como “forma de financiar o trabalho de conservação”, se deu após uma visita de representantes da CITES à sede da ACTP em Berlim. A associação alemã é quem construiu e financia a manutenção do refúgio de Curaçá, com apoio da fundação belga Pairi Daiza (saiba mais nesta outra reportagem).
“Poder de decisão soberano” da ACTP
O Conexão Planeta teve acesso a dois documentos que revelam um pouco sobre o contrato feito pelo governo brasileiro com a Association for the Conservation of Threatened Parrots.
Um deles é um Protocolo de Intenções, em inglês, assinado em 2018 pelo então ministro do Meio Ambiente Edson Duarte. Nele as partes envolvidas são o MMA, o Instituto Chico Mendes para a Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a ACTP e a Pairi Daiza (há uma alusão a um “memorando de entendimento” anterior, datado de 2016).
No texto, que não contem valores de investimentos, prazos ou números exatos de aves a serem repatriadas ao Brasil, é delineado o programa de reintrodução da ararinha-azul no país. O acordo estabelece que a ACTP irá trazer as aves da Alemanha – o que aconteceu em 2020 – e apoiará e cuidará a operação do projeto de reprodução e reintrodução em Curaçá por um período “não menor do que cinco anos”.
Já a Pairi Daiza ficaria responsável por construir um outro centro de reprodução na Bélgica, além de ajudar a financiar os recursos para a operação na Bahia.
O Protocolo de Intenções indica que a ACTP ficará responsável pelos recursos financeiros e escolha de profissionais envolvidos
Em nenhum ponto do Protocolo de Intenções há menção sobre a venda ou transferência de aves pelas partes envolvidas, seja no Brasil ou no exterior.
Em nosso questionamento à assessoria de comunicação do MMA, perguntamos se o governo do Brasil tinha conhecimento da comercialização das araras com a Índia, resposta essa que também não conseguimos.
Martin Guth (primeiro à esquerda) e o então Ministro do Meio Ambiente, Edson Souza (de gravata)
durante visita à sede da ACTP, na Alemanha
(Foto: reprodução Facebook ACTP)
O outro documento que o Conexão Planeta obteve é referente à “Gestão do Programa Ararinha na Natureza”. Ele foi apresentado em 2020 por um dos profissionais do ICMBio responsáveis pelo projeto em Curaçá.
Em mais de 100 páginas são detalhados vários pontos do programa, contudo, o que chama a atenção é uma planilha com o mapeamento dos principais “stakeholders”, ou seja, as partes envolvidas.
Logo no início da análise aparece a ACTP, e no tópico “Fraquezas” é citado que ela tem “problemas de relacionamento com parceiros”. Já no quesito “Ameaças” aparece que o criadouro possui “planos e
expectativas instáveis e questionamentos quanto à idoneidade“.
A referência deve ser pelas denúncias feitas em 2018 pelo jornal britânico The Guardian, que levantou uma série de fatos sobre Martin Guth, proprietário da ACTP. De acordo com a reportagem da época, o alemão, preso durante cinco anos por crimes de extorsão e sequestro, poderia ter envolvimento com o tráfico ilegal de aves.
Na tabela sobre a gestão do programa compartilhada com o ICMBio é mencionado ainda que entre as expectativas da ACTP estão “ter poder de decisão soberano e ser reconhecida como responsável pelo sucesso do programa”.
Pesquisadores e biólogos que trabalham na área de conservação se dizem decepcionados com o silêncio do ministério do Meio Ambiente sobre a questão. E continuam aguardando uma declaração.
Documento do ICMBio mostra expectativas da ACPT: ter poder de decisão soberano
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Foto de abertura: reprodução Facebook ACTP