Ouço, de onde estou, barulho de panela. É muito comum ouvir este som na cozinha desta casa.
Apuro as orelhas. O pilão. Eu conheço este som abafado e ritmado. Deve ter alho, pimenta do reino, sal…
Nossa, que silêncio. Silêncio de corte de faca.
Ah, mas ninguém melhor do que eu, com meu focinho, pra sentir, de longe, cheiro de bacon. Pelo jeito, fatias finas. E, agora, cenoura.
Ela vive tentando me dar cenoura crua pra comer. O Ernesto adora, mas eu nunca gostei disso. Tá bom, vá lá. É gostoso, refrescante e crocante. Vou me acostumando. Desde que cheguei aqui, minha dieta mudou mesmo…
Cheiro de cebola. Tadinha, ela deve estar chorando. Já vi, da porta, ela chorar quando corta cebola. Não entendo. É só efeito da cebola ou ela fica triste mesmo?
Ah!! Não provoca! Ela acaba de tacar linguiça calabresa no processador!! Owm!!!
Agora, um cheiro de tempero… será que é orégano? Será que ela usa orégano? Sei, não, tô em dúvida.
Alecrim. Este eu conheço. Tem um vaso ali embaixo, perto da jabuticabeira. O cheiro é bem marcante. Uma vez, tive que pular o vaso pra correr atrás do jacu, que queria comer a jabuticaba. Tropecei e o jacu voou.
Tomilho. Tomilho limão. Pimenta dedo de moça…
Silêncio de novo. Mas, tem um radinho de pilha. Ela sempre cozinha ouvindo ou música ou notícias. O Ernesto até dorme com o barulhinho. Eu fico mais atenta.
Escuta! Barulho de um líquido sendo derramado. Vinho. Eles adoram. Tomam à noite. Já vi também. Vinho na carne? Tá ficando cada vez melhor este negócio.
Carne e tudo isto junto…
Agora, percebo aromas que não me atraem tanto. Paciência: berinjela, abóbora, abobrinha, mais cebola, ervas frescas… Tá ficando adocicado. Ela deve estar assando estes legumes todos. A tal mistura. Guarnição (aprendi esta palavra aqui).
Opa! Ela tirou a touca. Tirou o avental. Vai subir.
E eu vou entrar…
Não acredito!!! O que ela fazia, todos aqueles cheiros juntos bem aqui! Não, não na minha frente. Acima de mim. Em cima da bancada. Um pulo e…
Consegui!!
Caramba, acho que quebrei alguma coisa. Mas, alcancei meu prêmio. Agora é só arrastar esta gostosura pro quintal e comer devagarinho.
Vou fingir que não vi o rastro de vinho e tempero no chão da cozinha, da sala, do corredor da entrada que deixei enquanto arrasto esta belezura pro quintal…
Divido com Ernesto? Só se ele pedir…
– Lalita!!!!!!
Ih… ela não foi tomar banho, não?
Estou aqui, sentadinha na grama. O meu prêmio do lado. Vou disfarçar e bocejar. Nem sei como o lagarto recheado chegou aqui!
– Bla, bla, bla, bla, bla…
Tá, tá, tá (murcho a orelha e abano o rabo). Eu não deveria ter feito isto, já entendi.… Mas, são meus instintos…
Ela pegou o telefone. Vai ligar pro Rogério pra reclamar. Tá brava. Ai, ai, ai…
Opa, gostei desta parte.
– conformar… cozinhar pra eles… misturar na ração e dar aos poucos…
Entendi tudinho. Não foi em vão. E o Ernesto vai ter que me agradecer.
E as visitas? Vão comer o quê? Prevenida, esta moça. Aqueles legumes assados são pra torta rústica de legumes. Também tem peixe assado. Pelo menos, ouvi isto na conversa…
É justo que o lagarto fique pra nós, né, Ernesto?
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O relato acima é de Lalita, que enviou uma minibio para se apresentar:
Sou uma vira-lata bem vivida. Morei por aí, nas ruas e em abrigos por anos. Conheço de tudo. Porta de restaurante fino, popular; já encontrei iguarias em lixeiras; também enfrentei dias difíceis. Mas, sempre me virei. Até vir pra esta casa. Família de pai, mãe, três filhos e um cachorrão megacharmoso de nome Ernesto. Todo respeito por ele, que já estava aqui há muitas luas cheias, antes de eu aparecer.
Quando cheguei, ele deixou bem claro quem é que manda neste território. Fez tanto barulho que fui parar embaixo do carro e quase nunca mais quis sair. Mas, cão que ladra, não morde. Eu sabia. Nos damos bem. Uso a cama que ele nunca quis, com almofadas. Ele dorme no canil, que nunca havia sido ocupado até minha adoção. Ele vem com a desculpa de que prefere ficar lá porque tem mais espaço. Ok, bonitão. Eu lato. Ele late e uiva. Ele come mais do que eu. Muito mais.
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E a receita de hoje é:
TORTA RÚSTICA DE LEGUMES
(A receita do lagarto fica pra próxima, já que não foi servido para as visitas nesta ocasião, por motivos caninos. No próximo texto, a receita do lagarto virá com outra história)
Esta torta tem inúmeras versões. Já vi receita de um monte de chef. Já experimentei algumas. Com banha, em vez de manteiga, com menos farinha, sem ovo… O resultado, aqui, é um mix destas experiências. A massa fica bem firme e crocante.
No recheio, estes legumes sugeridos são imbatíveis. Mas, dá pra acrescentar aspargo, queijo de cabra, alho poró. Ouse.
INGREDIENTES
MASSA
500 g de farinha de trigo
2 colheres de gordura vegetal (fria)
2 colheres de manteiga (fria)
100 ml de água (talvez você não use tudo)
1 pitada de sal
1 gema para juntar à massa
1 gema para pincelar
RECHEIO
2 berinjelas pequenas cortadas em cubos médios ou fatias médias (se optar por fatia, corte a berinjela ao meio e fatie)
400 g de abóbora cabotiá em cubos
2 abobrinhas italianas cortadas em cubos médios ou fatias médias (corte a abobrinha ao meio e fatie)
2 cebolas cortadas em gomos
1 pimentão vermelho, sem semente, cortado em cubos médios
tomatinho cereja – o quanto quiser (alguns inteiros, outros cortados ao meio)
3 dentes de alho roxo, cortados ao meio ou em pedaços grandes
pimenta dedo de moça, sem semente, cortada em cubos (opcional)
tomilho, alecrim
flor de sal
ervas de provence ( opcional)
MODO DE PREPARO
Massa
Peneire a farinha. Misture com o sal. Acrescente a gordura vegetal e a manteiga e vá amassando com a ponta dos dedos até formar uma farofa. Adicione a gema e continue amassando. Acrescente água aos poucos, até dar o ponto; até ficar homogênea. Faça uma bola com esta massa, envolva num plástico filme e leve à geladeira por, pelo menos, meia hora. Pode fazer a massa no dia anterior, pra ganhar tempo.
Recheio
Distribua, numa assadeira, a berinjela e a abóbora cabotiá. Regue com azeite e leve ao forno por 15 minutos (estes vegetais demoram mais para assar e ficar macios). Depois deste tempo, acrescente os outros ingredientes, regue com mais azeite, salpique flor de sal , acrescente alecrim e tomilho, ervas de provence e volte para o forno por mais meia hora ou até que todos os vegetais estejam dourados e macios. Macios, mas não moles, tá?
Retire do forno e reserve.
(Uma dica de aproveitamento de alimentos saudáveis: a casca da abóbora cabotiá assada fica uma delícia e é ótima opção para aperitivo. Fatie em chips- fica mais simples fazer fatias finas se tiver uma mandolina – coloque numa assadeira, salpique flor de sal e aproveite o calor do forno para assar).
Volte para a massa.
Abra a massa numa superfície enfarinhada até obter uma medida de 40 cm de diâmetro.
Transfira a massa para uma forma redonda, enfarinhada. Deixe que sobre massa nas bordas da forma. Este é o charme da receita. Aguarde.
Recheie a torta com os legumes assados. E aí, o charme: dobre a massa sobre o recheio, deixando que os legumes apareçam ao centro. Não tente moldar esta dobra lateral. Quanto mais displicente, mais bonito. Pincele, na borda, a gema de ovo batida e leve ao forno até que a massa fique dourada. Teste para ver se está assada: bata com um talher. Se fizer um barulho oco, está perfeita.
Na hora de servir, um pouco mais de azeite, mais alecrim e tomilho frescos. Fica lindo.
E deixe um molho de pimenta por perto. Pra quem gosta…
Sirva como opção ao lagarto recheado, ai, meu Deus!
Para acompanhar, uma saladinha verde.
Ou apenas ela, imperiosa, com vinho branco.
Para ouvir, Um dia de cão, de Chico Buarque… Não precisa ouvir enquanto come. Nem enquanto cozinha. É só uma homenagem aos meus peludos preferidos, Lalita e Ernesto. Apesar de tudo.
Foto: domínio público/pixabay