Não que a receita misture chicória e guaraná na mesma panela. Não mesmo. Chicória e guaraná encontram-se na mesma cena desta historinha que eu vou contar.
Na noite que chovia, sentaram-se para jantar o pai, a mãe, os dois filhos e a avó. A avó era uma mulher doce, mas muito séria. Ria muito pouco. A neta quase nunca via a avó sorrir. Podia ser a saudade da Síria, terra natal, onde pastoreava ovelhas. Podia ser saudade do marido, porque ela enviuvou. Tinha alguma saudade ali que encobria o sorriso.
Então, todos à mesa para comer arroz, feijão, carne de panela e chicória temperada com cebola, alho, orégano e azeite. A chicória era a avó que fazia num pilão velho de madeira. Até quem não gostasse do amargor da chicória não resistia à receita feita pela avó. Boa, saborosa, temperada. Podia comer misturadinho no prato com todo o resto, isso podia. Mas gostoso mesmo era rasgar o pão – sempre presente à mesa árabe – e pinçar com ele a chicória verdinha de dentro do pilão.
Naquela noite, todos já se preparavam pra isso quando o pai pediu pra menina:
– Vai lá na venda e busca um guaranazinho Pequetito pra sua vó.
Não era a primeira vez que ele pedia. Quase sempre, com a mesa posta, alguém era convocado pra ir até a venda buscar a bebida ( uma iguaria regional, puro açúcar e maravilhoso com pão e mortadela). A venda era da família e era ali pertinho, a poucos passos da cozinha. Casa e venda uma coisa só. Era sair da cozinha, atravessar a sala, com sofá, mesa grande e televisão e entrar na venda, onde todo aquele estoque de guaraná, doce de leite, mortadela, suspiro, linguiça, tudo, tudo estava lá pra ser servido.
A menina foi, abriu o refrigerante caçulinha lá mesmo com o abridor que ficava pendurado num prego e deu a volta pra levar a bebida pra vó. Como sempre fazia, no escuro da sala, sem testemunhas, deu uma bebericada, um golinho pequeno no bico da garrafa que seria entregue pra avó. Mas naquela noite a TV estava ligada em cima do móvel de madeira entalhada. TV de tubo, em preto e branco, com uns chuviscos na transmissão. Sempre que chovia, piorava a imagem, mas ainda assim dava pra ver na tela uma dança frenética e engraçada. E a neta ficou ali, assistindo à dança chuviscada com o guaraná na mão. Distraída, seguiu bebericando em segredo, por mais tempo. Aí, o pai chamou, da cozinha:
– Uai, traz ou não traz o guaraná da vó?
A neta correu pra cozinha com a garrafa na mão e o líquido quase pela metade.
– Uai, cê bebeu o guaraná da vó?
Os golinhos roubados no caminho foram revelados e a prova era a garrafinha de guaraná meio vazia, meio cheia. Nunca mais teria a confiança do transporte dessa mercadoria…
A neta corou de vergonha e nem falou nada. Não tinha desculpa pra dar. Toda encabulada, olhou primeiro o pai, depois olhou a vó. A vó riu. Riu gostoso. E todo mundo riu. E a neta viu, talvez pela primeira vez – ela não se lembra muito bem – a avó tão séria dar risada. Encabulada ainda e com vontade de chorar, sorriu também, pegou o pão, rasgou, pinçou a chicória do pilão de madeira e comeu. Todo mundo comeu.
CHICÓRIA DA VÓ SARAH
INGREDIENTES
1 pé de chicória
uma cebola pequena (ou meia )
2 dentes de alho (mais ou mais, ou menos, depende do seu gosto)
pimenta do reino em grãos (a gosto )
orégano seco (quanto quiser)
sal (o quanto baste)
azeite (seja generoso)
O sabor de todos estes ingredientes tem que aparecer. Deixo você à vontade para dosar, de acordo com seu paladar.
MODO DE PREPARO
Lave e seque a chicória. Pique ou rasgue as folhas em pequenos pedaços. Reserve.
Num pilão, soque o alho e a pimenta do reino. Acrescente o orégano, uma pitada de sal e misture bem. Reserve.
Pique a cebola miudinha. Aqueça um fio de azeite numa panela de fundo grosso e refogue a cebola até ficar transparente. Acrescente a chicória e mexa até que as folhas murchem e sejam cozidas ainda al dente.
Tire o refogado da panela. Se tiver caldo, esprema numa peneira para que as folhas fiquem sequinhas. Reserve o caldo para outros preparos.
Depois que a chicória refogada estiver enxutinha, misture aos ingredientes do pilão. Acrescente mais azeite. Prove e ajuste o sal.
Sirva com pão. Tanto faz se é pão francês ou pão sírio. Mas sempre rasgue o pão e, com ele, pince a chicória do recipiente direto pra boca.
Também acompanha muito bem carne assada, carne de panela, arroz e feijão.
Essa receita pode ser feita com outras verduras de sabor acentuado como escarola ou folhas de rabanete.
Foto: creative commons/wikimedia
Lindo! Poetico
Saboroso ao paladar , saboroso aos ouvidos (qdo lido baixinho) saboroso pro coração (qdo sussurado)
Nossa, deu até vontade de devorar.