Enquanto aguarda o resultado do Prêmio Nobel da Paz 2020, o cacique kayapó lança manifesto junto com 6,2 mil indígenas do povo Mẽbêngôkre – Kayapó, que vive em 56 comunidades das Terras Indígenas Baú, Capoto/Jarina, Kayapó, Las Casas e Menkragnoti, representadas pela Associação Floresta Protegida, pelo Instituto Kabu e pelo Instituto Raoni, localizadas no Mato Grosso e sul do Pará.
[O líder indígena concorre ao Nobel pela segunda vez, por sua trajetória em defesa do meio ambiente e dos direitos dos povos indígenas, e é um dos mais cotados. O vencedor dessa categoria será divulgado amanhã, 9/10, pelo comitê do prêmio, em Oslo. Esta semana o mundo já conheceu os laureados em Física, Medicina, Química (ganharam duas mulheres!) e Literatura].
O manifesto destaca o aumento desenfreado do desmatamento e da grilagem em seus territórios nos últimos anos e a intenção do governo de legalizar o garimpo em terras indígenas.
“Repudiamos a forma como o governo federal vem estimulando a invasão de nossos territórios, seja pela retórica que fortalece o crime organizado, seja pela omissão e fragilização dos órgãos responsáveis pela proteção dos territórios indígenas e pelo combate a atividades ilegais e predatórias”.
O documento destaca que, além de promover o desmonte dos órgãos de fiscalização e combate ao desmatamento, o governo ainda tem encorajado as invasões e a exploração predatória.
Nesse cenário, a Terra Indígena Kayapó tem sido “um dos epicentros da mineração ilegal“, que destruiu cerca de cinco mil hectares de floresta, nos últimos três anos. Para se ter ideia da dimensão do avanço desses invasores, o desmatamento provocado por essa atividade em suas terras da década de 1980 até 2015 – portanto, em cerca de 35 anos! – chegou a 2,5 mil hectares. Ou seja, metade do estrago feito de 2017 até agora.
Além disso, ainda é urgente considerar a gravidade que representam essas invasões e o garimpo para a integridade física dos indígenas, e que foi intensificada este ano com a Covid-19. Os invasores levam a doença para dentro das aldeias! Nas terras Kayapó, Menkragnoti, Badjokôre, Capoto Jarina e Baú já foram registrados 2032 casos e 16 mortes.
Parentes garimpeiros
Logo no início do manifesto (que você pode ler na íntegra, aqui, ou no final deste post), os signatários destacam que não compactuam com o envolvimento de indígenas de sua etnia na “cadeia de garimpo”, dizendo que são minoria e não estão autorizados a falar em seu nome.
“Não compactuamos com manifestações individuais de parentes Kayapó a favor do garimpo (…). Não autorizamos que eles falem em nome do Povo Kayapó “.
Explicam que, ao longo de 70 anos de contato com não-indígenas, passaram a consumir alguns produtos industrializados, “como vestuários, medicamentos e ferramentas, que nos auxiliam no nosso dia-a-dia”. Por isso, precisam de dinheiro e, para consegui-lo, só há dois caminhos.
Um é o do “dinheiro fácil“, que envenena, destrói e mata. “A crescente pressão sobre nossas comunidades fez com que algumas poucas lideranças fossem seduzidas pelo ganho financeiro rápido e fácil que o garimpo proporciona”.
O outro é“o caminho do aproveitamento da floresta em pé, do jeito que a gente aprendeu de nossos antepassados e que protege nossos territórios e nosso povo. É esse o caminho de futuro que escolhemos, um caminho que já está trazendo resultados bastante positivos para nossas comunidades. O caminho do futuro“.
Assim, o manifesto é uma resposta a todas as pessoas que não compreendem porque indígenas precisam de dinheiro. É também uma declaração linda de como estes povos sabem tirar proveito da natureza sem destruí-la.
“Como poderíamos ser a favor de uma atividade que gera profundos impactos ambientais e sociais aos nossos territórios e comunidades? Como poderíamos privar nossos filhos e netos de um território preservado para seguirem vivendo segundo nossos usos, costumes e tradições, como garante a Constituição Federal?”.
E, por fim, Raoni e as três instituições que assinam, com ele, a carta, pedem o apoio das sociedades brasileira e internacional “na luta pela proteção de nossos territórios, exigindo do governo o respeito à Constituição Federal, o direito de usufruirmos de nossos territórios segundo nossos costumes, e o direito de todos nós a um meio ambiente ecologicamente equilibrado”.
Vale ler o texto na íntegra! (no final deste post)
Aceite o convite de Raoni. Pressione os parlamentares para que repudiem a votação do Projeto de Lei 191/2020, citado no manifesto. Responda à consulta pública e aproveite para assinar a petição online.
Esse PL não versa apenas sobre mineração em terras indigenas como também propõe a exploração dos recursos hídricos para geração de energia, por meio de hidrelétricas que, como sabemos, arrasam tudo.
Lembra de Belo Monte, que devastou a região de Altamira: floresta, terras indígenas e vidas? Essa hidrelétrica monstruosa não produz a energia prometida, não trouxe desenvolvimento sustentável para a região e devastou tudo, como mostra o documentário dirigido pelo indigenista Todd Southgate: Belo Monte: depois da inundação.
Mobilização pelo país e pelo mundo
Até janeiro deste ano, Raoni Metuktire não parava. No ano passado, realizou uma intensa viagem à Europa para pedir apoio a diversos governantes e ao Papa Francisco.
Foi à Cúpula da ONU, refutou as declarações desrespeitosas de Bolsonaro – que chegou a recusar convite de Emmanuel Macron, presidente da França, para conversar com o líder indígena –, fez novos apelos aos países ricos do G20 e concorreu ao Nobel da Paz.
Em janeiro deste ano, viajou ao Reino Unido para participar de debates sobre o futuro da Amazônia, na Universidade de Oxford com pensadores de diversas partes do mundo.
Depois, reuniu 600 lideranças indigenas, extrativistas e quilombolas no Encontro Mēbengôkre, na aldeia Piaraçu, na Terra Indígena Capoto Jarina (MT), onde mora.
Dessa mobilização – que teve a participação intensa das mulheres -, resultou o Manifesto pela Vida e o relançamento da Aliança dos Povos da Floresta, com a presença de Angela Mendes, filha de Chico Mendes.
Há anos que os povos indígenas lutam contra a ganância, o desenvolvimento econômico e a falta de apoio dos governos (desde 1500, né?). Com Temer, entre 2016 e 2018, essa luta se intensificou, mas desde o ano passado, com a chegada de Bolsonaro ao poder, eles não têm mais sossego.
Ao reunir os líderes de todas as etnias do Brasil parece que Raoni previa a urgência de unir forças para enfrentar a explosão da destruição do meio ambiente e das ameaças aos povos indígenas e tradicionais que estava por vir.
“Este encontro não é para planejar uma guerra, um conflito. Estamos aqui para defender nosso povo, nossa causa, nossa terra. Eu quero pedir, mais uma vez, que o homem branco nos deixe viver em paz, sem conflito, sem problema. Eu nunca faria um encontro para atacar alguém. Estamos reunidos aqui para nos defender”, disse o líder.
Nada nem ninguém derruba Raoni
O cenário indicava que teríamos um ano de muita luta e mobilização – nas ruas e na Esplanada dos Ministérios -, mas veio a pandemia, e 2020 tornou-se ainda mais desafiador para o cacique.
Em junho, ele perdeu sua companheira, Bepkwyjka Metuktire. Triste e vulnerável, um mês depois foi acometido por uma infecção intestinal que o levou à internação num hospital em Sinop, ao norte de Mato Grosso. Um mês depois, novo revés: Raoni foi contaminado por Covid- 19, doença da qual ainda se recupera.
Semana passada, foi à cidade para acompanhamento médico e falou à imprensa sobre as mentiras contadas por Bolsonaro no discurso que abriu a Assembleia da ONU.
“Isso eu não aceito!”, declarou. “Ele diz no jornal que tá botando fogo no mato, na floresta. Isso é pura mentira. Por que? Quem está botando fogo são os próprios fazendeiros. Alguns fazendeiros estão prejudicando o mato. Garimpeiro tá prejudicando o mato, a natureza. Madeireiro tá prejudicando a natureza. Eles é que estão botando fogo na floresta”.
Agora, com seu povo, o cacique Kayapó faz este apelo urgente. Para ganhar ainda mais voz, só mesmo recebendo o prêmio Nobel da Paz. Levando em conta que a honraria pode ser dividida entre três candidatos, as chances ainda são grandes. Só depende da sensibilidade do comitê para as questões indígenas, que não são privilégio de etnias brasileiras, mas de todas que ainda resistem pelo mundo, em especial no continente americano.
Pra finalizar, indico a leitura do texto que o Instituto Socioambiental publicou pra explicar Por que o Cacique Raoni deve ganhar o Nobel da Paz e outro, que o fotógrafo e indigenista Renato Soares escreveu, em 2017, para seu blog Ameríndios do Brasil, aqui no Conexão Planeta, no qual o cacique diz que tudo tem espírito.
Agora, fique com o texto do manifesto, na íntegra.
Manifesto Kayapó contra o garimpo
“Nós, cerca de 6,2 mil indígenas do povo Mẽbêngôkre – Kayapó de 56 comunidades das Terras Indígenas Baú, Capoto/Jarina, Kayapó, Las Casas e Menkragnoti, associadas à Associação Floresta Protegida, ao Instituto Kabu e ao Instituto Raoni, vimos através deste manifesto esclarecer que não compactuamos com manifestações individuais de parentes Kayapó a favor do garimpo.
Mais uma vez queremos deixar bem claro que somos contra o garimpo e qualquer atividade predatória em nossos territórios!
Repudiamos a forma como o governo federal vem estimulando a invasão de nossos territórios, seja pela retórica que fortalece o crime organizado, seja pela omissão e fragilização dos órgãos responsáveis pela proteção dos territórios indígenas e pelo combate a atividades ilegais e predatórias.
Apesar de a grande maioria do povo Kayapó ser contra o garimpo em nossos territórios, a crescente pressão sobre nossas comunidades fez com que algumas poucas lideranças fossem seduzidas pelo ganho financeiro rápido e fácil que o garimpo proporciona. Não autorizamos que eles falem em nome do Povo Kayapó, especialmente porque muitas famílias de suas próprias aldeias não apoiam essa atividade.
Como poderíamos ser a favor de uma atividade que gera profundos impactos ambientais e sociais aos nossos territórios e comunidades? Como poderíamos privar nossos filhos e netos de um território preservado para seguirem vivendo segundo nossos usos, costumes e tradições, como garante a Constituição Federal?
Nossos territórios nos dão quase tudo o que precisamos para nosso bem viver. É da caça e da pesca, da coleta de frutos e sementes em nossas florestas e do cultivo de nossos roçados que conseguimos a maior parte de nossos alimentos.
É em nossas florestas e cerrados que nossos pajés coletam uma infinidade de produtos que utilizamos em nossa medicina tradicional na prevenção e tratamento de inúmeros problemas de saúde. Foi esse conhecimento tradicional que reduziu o impacto da pandemia da Covid-19 em nossas comunidades, ajudando a nos proteger e tratar nossos doentes.
É também de nossas florestas e cerrados que tiramos materiais para a construção de nossas casas, a produção de utensílios que usamos no dia-a-dia e a confecção de artesanatos e enfeites que usamos em nossos rituais tradicionais.
É em nossas florestas e rios onde fazemos caçadas e pescarias coletivas que precedem nossos rituais; onde coletamos castanha, cumaru, açaí, entre centenas de outros alimentos e materiais; onde nossas crianças se divertem e aprendem, na prática, com seus pais e especialmente com nossas anciãs e anciões, como ser um Mẽbêngôkre.
No entanto, ao longo das cerca de sete décadas de contato, nós, indígenas do povo Mẽbêngôkre – Kayapó, passamos a consumir alguns produtos industrializados que não produzimos em nossos territórios, como vestuários, medicamentos e ferramentas que nos auxiliam no nosso dia-a-dia. Assim, hoje, todos nós precisamos de algum dinheiro para suprir nossas necessidades. Mas existem dois caminhos muito diferentes para termos acesso ao dinheiro.
Um caminho é o do dinheiro fácil e rápido, que destrói nossos territórios e recursos naturais, traz brigas, envenena nossos rios e comunidades e condena as presentes e futuras gerações a uma vida cada vez pior e mais dependente dos Kuben (não indígena). Esse é o caminho do garimpo, da pesca predatória e da madeira!
O outro é o caminho do aproveitamento da floresta em pé, do jeito que a gente aprendeu de nossos antepassados e que protege nossos territórios e nosso povo. É esse o caminho de futuro que escolhemos, um caminho que já está trazendo resultados bastante positivos para nossas comunidades.
Aos poucos, nossos projetos de geração de renda através do fortalecimento de cadeias produtivas da biodiversidade e do artesanato Kayapó, assim como de iniciativas de turismo de base comunitária, estão se fortalecendo e demonstrando que não precisamos destruir nossas florestas e rios, nem abrir mão de nosso futuro, para ter acesso aos bens do Kuben que hoje precisamos para viver bem.
Nós, povos indígenas e populações tradicionais, protegemos diariamente a natureza e continuaremos a assim fazer. A proteção de nossos territórios é uma prática que vem de nossos ancestrais. Ao protegermos a floresta, cuidamos do que o Kuben chama de biodiversidade. E a biodiversidade também cuida de nós, garantindo o que precisamos para viver bem e continuar com nossa cultura forte.
Sabemos que quando cuidamos de nosso território, não são apenas nossas comunidades que se beneficiam das florestas e rios preservados. Sem nossas florestas, o clima e as chuvas na região vão mudar, afetando a produção de alimentos e a vida de milhares de pessoas, indígenas e não indígenas. Os rios que nascem ou passam por nossos territórios correm para outras regiões e se não cuidarmos deles muitas outras pessoas também serão prejudicadas.
Fazemos um apelo a toda a sociedade brasileira e internacional para que nos apoie na luta pela proteção de nossos territórios, exigindo do governo o respeito à Constituição Federal, o direito de usufruirmos de nossos territórios segundo nossos costumes, e o direito de todos nós a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Somos contra o garimpo em nossos territórios e contra o PL 191/2020!“.
Foto: Mídia Ninja