A Polícia Federal (PF) indiciou Marcelo Xavier, ex-presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), por homicídio qualificado e ocultação de cadáver no caso dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.
O crime bárbaro aconteceu em junho de 2022, no Vale do Javari, no Amazonas, onde fica a segunda maior terra indígena do Brasil.
Após investigações e a avaliação da ata de uma reunião realizada em outubro de 2019 em Atalaia do Norte, a PF entendeu que ele não tomou as medidas necessárias para combater crimes identificados por servidores do órgão na região – um deles acabara de ser assassinado por isso -, então, assumiu o risco que outros crimes ocorreriam.
Nem ele, nem Alcir Teixeira, coordenador-geral de monitoramento territorial do órgão, que o substituia ou representava sempre que necessário e era chamado de “o número 2 na Funai”.
Denúncias ignoradas e omissão
Desde que assumiu a presidência da Funai, em junho de 2019, Xavier havia recebido diversas notificações dos servidores sobre os perigos da região, como ataques às bases da Funai (na que fica na Terra Indígena Vale do Javari foram mais de uma dezena!) e ameaças de morte, em especial depois que o indigenista Maxciel Pereira dos Santos, 29 anos, foi morto com dois tiros na cabeça numa rua de Tabatinga, por um pistoleiro.
Maxciel e Bruno eram parceiros, dedicados a combater os crimes praticados contra os indígenas e seu território no Vale do Javari, que também abriga povos isolados.
Como Xavier não tomou nenhuma providência, os servidores pediram encontro com um representante da Funai em Atalaia. Depois de ouvi-los sobre todos os acontecimentos, Alcir Teixeira respondeu que os relatos não “possuíam materialidade”.
Questionado por um dos servidores se a presidência da Funai então assumia “que nós não corremos risco de vida”?, Teixeira disse que “não havia convicção por parte da presidência de que existam, de fato, riscos a estes servidores, ‘até que se prove o contrário’”.
Foi assim que a PF concluiu que Xavier e Teixeira se omitiram diante de fatos – como o assassinato de Maxciel, que nunca foi investigado! – e das solicitações dos funcionários da Funai, portanto, agiram “com dolo eventual”: sabiam dos perigos e não agiram para contê-los, assumindo riscos e consequências, como o assassinato de Bruno e Dom.
Sua decisão foi condizente com o desmonte que Xavier vinha promovendo no órgão a mando de Bolsonaro.
Quem se destacava no combate ao crime, se não morresse, era afastado de suas funções, como aconteceu com Bruno. Ele “ganhou” um cargo administrativo na sede da Funai, em Brasília, onde ficou por pouco tempo até pedir licença e voltar ao Vale do Javari – por conta e risco – para continuar protegendo os indígenas e os ensinando a se protegerem.
Quando Bruno e Dom sumiram, faziam uma expedição para reportagens do jornalista na região que fariam parte de um livro sobre a Amazônia. Há tempos, o indigenista o acompanhava nas viagens ao Javari e tornaram-se amigos. Depois de alguns dias na base da Funai na terra indígena, eles voltavam de barco para Atalaia do Norte, onde chegariam em duas horas, mas nunca completaram a viagem.
Uma semana depois, seus pertences foram encontrados próximo de uma árvore; mais três dias e a Polícia Federal foi levada aos corpos por um dos suspeitos. Bruno e Dom foram mortos com tiros na cabeça e no tórax, e seus corpos queimados antes de serem esquartejados e enterrados.
Suspeitos de um crime
Quando tomou conhecimento do desaparecimento, Xavier disse apenas que os dois deveriam ter solicitado autorização para entrar na região. Já Bolsonaro declarou que deveriam andar armados. “É muito temerário você andar naquela região sem estar devidamente preparado fisicamente e, também com armamento devidamente autorizado pela Funai, que pelo que parece não estavam”. Ou seja, lavaram as mãos.
A PF deu início ao indiciamento porque, após investigações e o conhecimento do conteúdo da conversa entre Teixeira e os servidores, identificou-os como suspeitos de um crime.
Agora, cabe ao Ministério Público Federal analisar se há elementos suficientes para que seja apresentada uma denúncia formal à Justiça. Neste caso, os suspeitos viram acusados.
Caso a denúncia seja encaminhada e aceita pela Justiça, Marcelo Xavier e Alcir Teixeira se tornarão réus e responderão judicialmente às acusações.
“Este homem [Xavier] é um assassino!”
Vale lembrar que, em junho de 2022, durante a 15ª Assembleia Geral promovida pelo FILAC (Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e Caribe), realizada em Madri, Espanha, Marcelo Xavier foi acusado publicamente por Ricardo Henrique Rao, ex-servidor da Funai.
Quando viu o presidente da Funai no recinto, denunciou: “Este homem é um assassino! Este homem é responsável pela morte de Bruno Pereira! Este homem é responsável pela morte de Dom Phillips! Miliciano!”. Antes, ele havia dito, em alto e bom tom, que Xavier “não é de digno de estar entre vocês” e que “o Itamaraty é uma vergonha!” por levá-lo à reunião. “O Itamaraty está sendo babá de miliciano!”. Xavier teve que se retirar.
Rao trabalhava no órgão desde 2010, mas fugiu do Brasil em 28 de novembro de 2019 para não morrer. Foi morar na Noruega, pedindo asilo em Oslo. Um ano depois, foi exonerado (retroativamente) por Xavier, num ‘processo sórdido’ que transformou o indigenista em devedor da Funai.
Em dezembro do ano passado, relatório da comissão da Câmara dos Deputados responsabilizou o Estado brasileiro pelas mortes de Dom e Bruno.
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Imagens: foto de Mario Vilela/Funai e ilustração de Cristiano Siqueira (Cris Vector)