É tempo de manga e de Folia de Reis. Uma coisa leva à outra. As mangueiras estão carregadinhas nos quintais. A criançada colhe do pé, rasga a casca com os dentes, arranca os fiapos, fazendo às vezes de um rastelo – nada se desperdiça – e morde a carne. E vai tirando nacos de manga até chegar no caroço, que fica chupado, branquinho. Toda carne e todo suco saboreados. A cara fica toda lambuzada. Nem lavam depois. Já vão atrás de outras mangas, em outros quintais, e comem mais mangas enquanto seguem a Folia de Reis, com seus cantos, cores, louvores e máscaras.
“Santos Reis aqui chegou, ai, Santos Reis aqui chegou oi larai
Nesta hora tão sagrada, ai, ai, oi lara, a, a, a, a.
Está pedindo a licença, está pedindo a licença, oi larai,
Pra entrar em sua morada, ai, ai, oi lara, a, a, a, a”.
Não se assuste com as máscaras. O palhaço da folia tem história e é preciso, bom, pelo menos esta é isso que aprendi: quando Jesus nasceu, Herodes mandou a guarda ir em busca do pequeno rei para matá-lo. Alguns soldados descobriram o paradeiro da família sagrada. Mas foi olhar pro bebê e ele sorriu e abriu os bracinhos. Um bebê irresistível e cheio de amor, que fez os soldados se converterem. Completamente. Trocaram a farda por uma fantasia e distraíram o exército, desviaram a atenção e a rota dos perseguidores. Foram incorporados com suas máscaras assustadoras à peregrinação dos Reis Magos do Oriente Melchior, Baltazar e Gaspar, que entregaram a Jesus ouro, incenso e mirra. Ouro para um rei, incenso para uma divindade, mirra para um mortal. Rica simbologia descrita apenas no evangelho de Mateus.
E todo ano, aqui em Minas Gerais, nesse pedaço de onde venho e onde agora estou, a Folia de Reis sai em visita às casas, de porta em porta, a partir do dia do Natal, repetindo a peregrinação dos magos, com a proteção dos palhaços soldados.
É composta de homens vestidos de camisa de chita ou uniformizados com camisetas. Tocam violão, rabeca, caixa, violino. Tem um puxador do canto, tem quem cante um agudo muito, muito alto, numa toada de arrepiar. Eles chegam com a bandeira dos Três Reis Santos, enfeitada com a imagem dos magos do Oriente e algumas fotografias das pessoas a quem as famílias dedicaram votos e fizeram promessa pra alguma cura. Alguma nota de real também vem pregada na bandeira que é acrescida linda e brejeiramente de flores de crepom vermelhas, amarelas, feitas a mão.
A folia entra, abençoa com a bandeira cada cômodo da casa e os moradores, canta e ganha uma oferta. Pode ser uma quantia em dinheiro, alguma comida para os integrantes. Do dia 25 de dezembro até 6 de janeiro, a Folia de Reis vive de donativos, almoça e janta em casa de devotos, que pagam promessa acolhendo os integrantes. Comida de folia é farta e clássica: carne moída com batata, macarronada com molho bem vermelho. Não varia muito.
E para a “chegada”, como é chamado o último dia da peregrinação, é reservada a leitoa. Assada inteira, carne tenra.
As casas de Minas, no Natal ou no Ano Novo, costumam servir uma leitoa pururucada. Inteira, com as orelhinhas em pé, a casca crocante. Pra acompanhar, tutu de feijão.
Meu filho, há anos, quando viu a tal leitoa exibida na mesa do Natal, ficou ensimesmado ao se deparar com um jeito meio rude de servir a iguaria, sem disfarçar que era um animal que até há pouco grunhia ali num quintal de algum vizinho. Porque sabemos que tem jeito mais refinado de servir leitão. Disfarçado de pedaços tenros na carne e crocantes na pele. Assadinhos, ladeados por frutas ou farofa.
Tudo isso temos também quando a leitoa vai inteira pra mesa. Só temos que saber lidar com a imagem explícita do bicho e nos deliciar com a crocância. É bruto, é bom e é assim que é. Assim que somos no interior de Minas.
Aqui na casa da vó mais uma vez vamos nos deparar com a leitoa à nossa moda no Natal. Já está encomendada. E meu filho talvez repita pra algum amigo da cidade grande o que disse quando viu a leitoa exposta assadinha na mesa do interior pela primeira vez: “Sabia que minha vó fez um porco e eles comeram o porco em forma de porco e com casca?”
RECEITA DE LEITOA DA MINHA MÃE FLORIPES
INGREDIENTES
Para cada quilo de leitoa:
uma colher (sopa) rasa de sal (20 g)
3 dentes de alho
3 grãos de pimenta do reino
1 colher (chá ) de gengibre fresco ralado
2 dentes de cravo da índia
banha de porco
Soca tudo no pilão, bem socado, até virar uma pasta. À parte reserve:
1/2 xícara (café) de vinagre
1/2 xícara (café) de vinho
MODO DE PREPARO
Mantenha a leitoa com a pele para baixo. Faça delicados furinhos na carne, sem atingir a pele. Espalhe a pasta pilada sobre a carne fazendo com que o tempero preencha os furinhos. Reserve uma porção deste tempero para espalhar sobre a pele, não agora.
Numa vasilha funda, derrame o vinho e o vinagre. Transfira a leitoa para a vasilha, deixando agora a carne em imersão e evitando que o líquido chegue à pele. Precisamos da pele da leitoa bem sequinha. Então, com um papel toalha, enxugue bem a pele, pegue aquele tempero reservado e, agora sim, esfregue na pele.
A leitoa fica no tempero por, pelo menos, 12 horas.
Na hora de assar, coloque a leitoa numa assadeira com a pele para cima. Seque novamente, apertando o papel toalha delicadamente, e unte a pele com banha de porco. Leve ao forno já aquecido a uma temperatura de 180 graus por, pelo menos, 3 horas. O tempo de forno varia de acordo com o tamanho da leitoa. Já chegamos a 5 horas de forno para que ela ficasse bem dourada.
Para testar se está assada, cutuque a carne com uma faca pela lateral, evitando rasgar a pele. Se a faca entrar com facilidade, está assada e tenra.
Para pururucar, assim que tirar do forno, derrame banha bem quente sobre a pele. Vai levantar a famosa pururuca.
Feliz Natal!
Foto: Pit Thomspon/Creative Commons/Flickr
Animais são amigos, não comida, e felizmente boa parte do Planeta já está preferindo festejar com animais vivos, não com o cadáver deles.