Faz tempo, eu tinha uns 11 anos, fui fazer um trabalho escolar na casa de um amigo. Passamos a tarde, uns cinco colegas, montando o trabalho. Acho que era de geografia. No fim do dia, na hora de ir embora, fui me despedir da mãe dele. Era uma mulher muito elegante. Ela estava na sala montando a mesa pro jantar. Fiquei maravilhada. Os pratos eram lindos, estampados, numa combinação sofisticada de vinho com dourado. Ela, caprichosamente, colocava os talheres ao lado dos pratos. Estava um ambiente de penumbra, aquele lusco-fusco do fim de tarde, começo da noite.
Conversamos um pouquinho sobre o trabalho escolar, talvez ela tenha perguntado como estava minha mãe, não me lembro bem. E eu não conseguia tirar os olhos daquela mesa tão bonita. Fiz a conta, rapidinho. Tinha lugar montado para toda a família: pai, mãe, três filhos. E para me deixar ainda mais encantada, ela colocou alguns morangos em potinhos, na diagonal de cada prato. Morangos. Morangos, sim! Era tão raro ver morango, comer morango. Frutinha desejada e quase nunca encontrada. Aquela senhora tinha um jeito aristocrático. Era chique mesmo. E muito delicada. A voz era suave. E servia morangos no jantar pra família durante a semana. Nunca me esqueci.
Na minha casa, o único dia em que fazíamos refeição todos juntos era no domingo. Em casa que tem venda, a porta fica aberta de domingo a domingo, tem que fazer revezamento pra almoçar e até, jantar. E é bem no domingo que meu pai fechava a venda na hora do almoço. Tinha uma tarde de descanso.
Domingo era o sagrado dia da refeição em família. O movimento na cozinha começava cedo. Trabalhar para fazer o almoço se misturava ao trabalho da venda. Então, era um entra e sai. Vai pra venda, atende freguês, põe o trigo de molho. Volta para venda, atende mais um, mais outro, volta pra cozinha, tira o trigo do molho, aperta no pano de prato. Deixa descansar mais um pouquinho. Mais freguês, mais conversa. No domingo, vendíamos muito macarrão e massa de tomate. Volta pra cozinha, alguém vigia a venda, mistura carne moída ao trigo e despeja tempero: cebola picada, pimenta do reino moída, sal.
Volta pra venda que as crianças vão adiantando o quibe na cozinha. Nesta receita, nós, crianças, éramos convocados e autorizados a botar a mão na massa. A missão infantil era passar a massa do quibe no moedor de carne, para incorporar bem o trigo e os temperos. Subíamos na cadeira para alcançar o moedor de manivela, que resiste ao tempo lá em Minas. Era começar a moer e subia o aroma da pimenta. A cozinha era invadida pelo cheiro, pelos risos, pela vontade de comer. Então, passávamos uma vez, moldavamos os novas bolotas de quibe, repassávamos no moedor e estava pronto o quibe cru. A gente arrancava uns nacos pequenos pra provar.
Venda fechada. Hora do almoço. Seu Jorginho, meu pai, que sempre ocupava a cabeceira da mesa, pedia uma porção, antes do almoço mesmo, que era pra ver “se tava bom de sal”, à moda de um primo também das arábias. Pura desculpa para comer antes de todo mundo.
O quibe cru era moldado a mão e ganhava uns tapinhas, arredondando o formato que ele adquiria, para alisar a superfície. O quibe ia pra uma travessa rasa, rodeado de rabanete, tomate, cebola crua, pepino, folhinhas de hortelã. Ficava bonito com aquela moldura colorida.
O ambiente do almoço tinha pão, arroz, feijão, quibe em muitas versões e radinho de pilha ligado. A trilha sonora era a melhor música sertaneja, selecionada pelos ouvintes e pelo locutor da Rádio Clube de Guaxupé: Milionário e José Rico, Tião Carreiro e Pardinho, Tonico e Tinoco. Só coisa boa.
Embalados por essa toada, a família inteira reunida, cada um pegava uma colherada do quibe cru – mais, muito mais – servia no prato, regava com azeite e comia. Comia muito.
Para mais sabor ainda, umas gotas de molho de pimenta, ou uma pimentinha cumari, em conserva feita em casa, apertada no prato. Todo mundo gostava de pimenta. Os adultos tomavam uma dose de pinga para acompanhar. Nós ficávamos com o guaraná Pequetito.
Adotei a dose de pinga pra acompanhar o quibe cru desde que fiquei adulta, porque combina que é uma beleza. Adoro reunir a família para as refeições, de preferência de domingo a domingo. Faço quibe cru com frequência e ele ocupa o centro da travessa rasa, rodeado pela moldura colorida, do mesmo jeitinho que era no almoço de domingo lá de casa. Tenho morango em casa com mais frequência e os sirvo em potinhos para cada ocupante da mesa. Estou em busca de louça em tons de vinho com dourado.
A receita de hoje é fácil e vem do lado árabe da família, herança de vó Sarah Anna Abdalla Gibrim, mãe do meu pai, que minha mãe Floripes honra com louvor e já passou pra mim faz tempo. O quibe cru pode ser entrada ou prato principal. A versão quentinha desta mesma massa é frita, grelhada, assada. Para moldar a massa sem grudar, é só umedecer a palma da mão com água. Facilita bastante.
RECEITA DE QUIBE CRU
INGREDIENTES
300 g de trigo para quibe
500 g de carne moída – patinho
sal a gosto
pimenta do reino a gosto
pimenta síria a gosto
1 1/2 cebola picadinha
MODO DE PREPARO
O trigo para quibe deve ser hidratado por duas horas em água fria. Já vi receita que manda colocar água quente. Não aconselho. Não é pra cozinhar o trigo. É só pra hidratar; os grãos ficam inchados e macios.
Depois de hidratado, o trigo é colocado num pano de prato (branquinho, sem resquício de sabão ou amaciante) e espremido para eliminar o resto de água.
Numa vasilha funda, vamos misturar trigo hidratado à carne moída, temperar com cebola picadinha, sal, pimenta do reino, pimenta síria (Uma mistura de pimenta do reino com cravo, noz moscada, cominho. Vale a pena usar!) e amassar bem. Se você não tiver moedor de carne, pode apenas amassar com as mãos.
Foto: domínio público/pixabay
Descrição perfeita de tudo. Até senti o cheiro e o sabor do quibe cru.
Esta receita é só fazer. Barabéns “Brima”…
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