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Bacalhau não é pecado

bacalhau

Coitado do Altair. A mulher traiu e foi morar com outro. Ficou triste, acabrunhado. Se apegou com Deus. Se já ia à igreja com ela, domingo, arrumadinho, agora é que ia mais ainda. Fervoroso, andava o Altair.

E veio a Semana Santa.

Naquele tempo, tinha muita assombração. As almas penadas vagavam, puxavam o pé dos parentes na madrugada, pesavam o corpo de quem dormia na cama que não podia nem virar pro canto, jogavam terra nos pratos de arroz com feijão, apagavam velas se o rezador cochilasse num dos pai-nossos. Quanta botina suja de barro aparecia embaixo das cortinas sem que ninguém as tivesse usado ou deixado ali. Quanta mulher de branco… Quanta…

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A Semana Santa era contrita. Não se limpava casa, não se lavavam cabelos, não se comia carne; pintar a unha, nem pensar; também não podia escutar música, nem cantar. Nem sorrir muito podia.

Era semana de reza diária.

E na madrugada de quinta pra Sexta-Feira da Paixão, o Altair saía com a matraca. Em cada casa, parava na porta, batia a matraca, acordava os moradores e pedia as orações:

– Aqui, ocês rezem três Ave-Marias e cinco Pai-Nossos pra livrá as arma do purgatório e dar a elas a paz de Nosso Senhor no Paraíso.
Sem abrir a porta, os moradores despertos respondiam Amém, se benziam com o Nome do Pai e obedeciam piamente. Já voltavam pra cama rezando forte.

No caminho, acompanhando a matraca do Altair, alguns devotos. Todos iam de branco. Essa procissão era pra angariar também a companhia das almas penadas. Quem olhasse pra trás poderia vê-las. E ninguém queria se espantar com a condição dos fantasmas penitentes.

O Altair dedicava muito da devoção em salvar as almas penadas. A alma dele mesmo, coitado, andava tão sem brilho, tão sem amor depois do abandono da mulher…

De porta em porta, Altair parava, batia a matraca tra, tra, tra, tra, tra, tra, tra, tra, tra.

Barulho seco, triste, sem sonoridade melodiosa. E cantava o hino triste, pra despertar os fiéis:

– Acordai, quem tá dormindooooo..

Tra, tra, tra, tra, tra, tra, tra, tra, tra

O coração de quem acordava disparava, sentindo tristeza. O cabelo arrepiava de medo. Só rezando.

– Amém, respondiam as casas na penumbra.

De porta em porta, Altair pedia comedido: cinco Ave Marias, dois Pai Nossos. Um Creio em Deus Pai. Amém.

– Amém, vinha em resposta.

– Um Pelo Sinal, seis Ave-Marias, dois Pai Nosso, um Creio em Deus Pai. Dorme com Deus.

Outros améns.

Aí, na peregrinação, ainda na madrugada, Altair matraca na porta do casal formado pela ex-mulher e o que ele chamava de amante. Em respeito ao Senhor Morto, o casal responde juntinho lá de dentro, esperando as ordens das orações de penitência.

Altair:

– Aqui, ocês devem expiar os pecados. O homem e a mulher que pecam vão pros infernos. Se Deus tiver piedade, vão, ao meno, penar no purgatório, que nem este bando de alma penada que fica vagando aí pra trás. Pro casal expiar os pecado, sarvá a arma docês memo e ajudá as pobre arma, tem que rezar mil Ave-Maria, 530 Pai Nosso, 350 Creio em Deus Pai e 34 Salve Rainha. Senão, cês vão pro inferno. Amém

(Este e outros contos, em breve, num livro de causos, em construção)

**************
Se é pecado, eu não sei, mas é melhor não comer carne na sexta-feira da Paixão.

Vamos de bacalhau, pra garantir.

RECEITA DE BRANDADE DE BACALHAU

(inspirada na receita do chef Laurent Suaudeau)

INGREDIENTES
4 dentes de alho
150 g de cebola (uma cebola média)
400 g de bacalhau (dessalgado)
200 g de batata asterix
duas unidades de cravo
125 ml de creme de leite
250 ml de leite integral
1 folha de louro
noz moscada
tomilho
sal à gosto

MODO DE PREPARO

Limpe o bacalhau, tire a pele, as espinhas e reserve.

Em uma panela, puxe alho e cebola no azeite. Junte o bacalhau cortado em cubos, o leite, a batata cortada em rodelas, o cravo, o tomilho e o louro.

Cozinhe por 25 minutos ou até secar o excesso de líquido. Um bom termômetro é a batata. Assim que ela estiver cozinha, está pronto.

Retire o tomilho, o cravo e o louro.

Amasse bem, com um garfo, acrescente o creme de leite e vá adicionando o azeite de oliva aos poucos. Ajuste o sal. Finalize com noz moscada ralada.

Está pronto.

Você pode preparar porções individuais, em ramekins (potinhos de cerâmica), cobertas com queijo parmesão ralado e gratinar. Ou servir generosa porção sobre uma fatia de pão italiano aquecido. Sobre a brandade, um ovo mollet* . Aí, você corta o ovo e a gema escorre bem bonita sobre a montagem de brandade e pão. Imperdível!!

Medite na Sexta da Paixão. Ouça o Canto de Verônica (é de arrepiar!).

Feliz Páscoa!

*Ovo mollet: cozinhe o ovo por 4, 5 minutos. Retire da fervura. Esfrie em uma vasilha com gelo por mais 4 minutos. Descasque com cuidado, reaqueça em água quente e acomode-o sobre a brandade de bacalhau.

Foto: @chuttersnap on unsplash

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