Se um chute inadvertido no cantinho da cama machucasse o dedinho do pé – aquela dor aguda – , meu pai logo dizia:
– Ô, dor desgramada, sô. Dá até vontade de comer arroz doce.
Picada de abelha? Arroz doce.
Joelho arranhado? Arroz doce.
Topada? Trombada? Arroz doce.
Ficávamos, às vezes, doentes. Nós, os filhos.
Um de cada vez, quase nunca dois ou três. Então, os não abatidos pela caxumba, sarampo, uma simples gripe, esperavam uma saidinha da mãe para adular o doente. Sendo assim, num tempo eu era assediada, noutro, assediava. E pedia ao irmão acamado que tivesse vontade de comer mingau de fubá bem docinho. Ou de maisena. Ou arroz doce…
_ Pede, pede, pede…
Ele pedia e era prontamente atendido. As receitas sempre mais abundantes do que o suficiente para um moribundo. Todos comíamos. E ficávamos sempre saudáveis.
Meu pai, coitado, caiu no quintal ao tratar das galinhas. Quebrou o braço, fez cirurgia, ficou internado. Na alta do hospital, nós, os filhos, fomos buscá-lo. Ele saiu caminhando, num orgulho só por ser acompanhado por aquele séquito de filhos. Os quatro.
Para a recepcionista, na saída, fez graça:
– Tudo filho. Inda tem mais um bando lá em casa.
E ria. Ela também riu.
Chegamos em casa.
E minha mãe, a que não foi ao hospital, acolheu o marido com um panelão de… arroz doce. Aquela iguaria que cura qualquer dor. Braço quebrado? Arroz doce…
Era a felicidade cozidinha, caramelada de açúcar queimado, com traços de canela e raspinha de limão. Era esta generosidade com guloseimas convalescentes que nos guia no trato aos que amamos. São dessas coisas de um amor escondido entre panelas.
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O arroz doce é uma comida deliciosa, cura dor e mau humor. Já usei como presente, embrulhado num pote de vidro, amarrado com barbante, enfeitado com uma rama de canela. E tem versões em muitos cantos do mundo. Em Bali, num curso rápido de culinária, um dos doces da sobremesa servidos era arroz doce. Não muito parecido com o nosso, que é cremoso. Mas, um arroz doce mais sequinho, acompanhado de banana. Já vi arroz doce no Peru. E em Doha. Em Portugal, ora, pois… Na Alemanha, é servido com purê de maçã.
Mas, o que eu gosto mesmo é da receita que aprendi com minha mãe. Que já não é mais a mesma. Claro que a minha xeretice aliada à curiosidade e alguns ingredientes extras já fizeram o arroz doce mineiríssimo ficar à moda… Acrescento cardamomo, faço calda com açúcar mascavo, deixo geladinho e sirvo com a crocância de um caramelo na cobertura. Ao estilo creme brulé. Tem que ter maçarico. E, nunca, nunca sem as raspinhas de limão. E se você acha, como eu, que a raspinha de limão é um charme imprescindível, adquira um zester. É um equipamento que ajuda muito a extrair a raspinha com rapidez e quantidade, sem machucar o limão ou sua mão.
RECEITA DE ARROZ DOCE
INGREDIENTES
1 xícara de arroz branco lavado e escorrido
2 xícaras de água
2 litros de leite
1 1/2 xícara de açúcar mascavo (prefiro este, porque deixa uma cor linda)
ramas de canela (umas 3 ou 4 pra esta receita)
grãos de cardamomo (um punhadinho)
raspinha de limão a gosto
canela em pó a gosto
açúcar cristal para caramelizar
doce de leite cremoso (este ingrediente você só vai usar se quiser)
MODO DE PREPARO
Em uma panela, coloque a água no fogo. Espere esquentar um pouquinho e acrescente o arroz.
Aqueça à parte os 2 litros de leite. Já, neste leite, coloque a canela e o cardamomo para ir pegando gosto. A canela tem poder de adoçar suavemente esta receita.
Se quiser, descasque o cardamomo e use os grãozinhos. Isto é escolha. De qualquer maneira, ficará muito aromático.
Quando a água ferver, acrescente o leite quente. Mexa, delicadamente com colher de pau. Enquanto cozinha, “queime” o açúcar mascavo. Coloque o açúcar numa outra panela, em fogo baixo e mexa sem parar. Depois de derretido, acrescente uma xícara (café) de água e continue mexendo. Verta o açúcar derretido no arroz em cozimento.
Prove e veja se, pro seu gosto, precisa de mais açúcar. Se precisar, acrescente aos poucos mais açúcar mascavo. Ou doce de leite pastoso. Não leite condensado; o doce de leite mesmo.
E fique por perto. É leite. E o leite, você já sabe, uma distraidinha e você vai chorá-lo derramado… Então, aproveite pra curtir o cheirinho bom. Mexa, com uma colher de pau, de vez em quando, sempre no fogo baixo, apurando, apurando. Sem pressa. Aprecie a cremosidade acontecendo.
Vai ficar pronto quando o arroz estiver macio e o caldo, cremoso.
Retire do fogo, espere amornar um pouco e acrescente a raspinha de limão.
Pode ser servido quente ou frio.
COMO SERVIR
Pulverize a superfície com canela em pó. Este é o jeito simples, tradicional, delicioso.
Se quiser impressionar e caramelizar a superfície, espalhe açúcar cristal sobre a porção e acenda o maçarico até formar uma casquinha. Pronto. Arroz doce brulé.
Monte a porção a ser servida em camadas: no fundo do pote, doce de leite pastoso; depois, arroz doce; canela.
Nós, este povo de Minas, sempre que temos arroz doce corremos pra arrumar um cafezinho fresquinho, passadinho no coador de pano. Nossa! Como orna!!
Coma ao ritmo de Cravo e Canela. Escolha entre a interpretação de Milton Nascimento ou MPB4 – sugestão minha e da minha professora de canto. Dos dois jeitos ficará muito bem servido.
Foto: Beto Orna/Creative Commons/Flickr