A bala nem era tão gostosa. Dizem que os consumidores lá nos anos 1920, da Belle Époque curitibana, jogavam fora a bala e ficavam com a embalagem que trazia o personagem Zéquinha. Era uma febre colecionar os 200 desenhos do personagem, representado nas mais variadas funções sociais, como um homem de meia idade, talvez nos seus 40 anos, magro e já um tanto calvo.
As embalagens teriam sido criadas por dois desenhistas-litógrafos: Alberto Thiele e Paulo Carlos Rohrbach, funcionários da gráfica que fazia a impressão, a pedido da fábrica de Balas Sobania. Sem intermináveis braimstorms, reuniões de marketing e de criação, os dois foram responsáveis pelo aparecimento de um sintoma.
“Zéquinha era sintoma de uma sociedade que vivia uma explosão de consumo, tanto de produtos nacionais como importados, num contexto de economia capitalista que se desenvolvia globalmente. Neste período, as embalagens dos produtos industrializados viraram um chamariz para os consumidores, que, através dos invólucros dos produtos, conheciam a mercadoria e se identificavam com ela.” Esta constatação está na pesquisa “Da coluna policial à coluna social: flagrantes do urbenauta Zéquinha em dois contextos da metropolização de Curitiba”, de Camila Santana, realizada na Universidade Federal do Paraná e Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Zéquinha sem pudores
Os colecionadores conheciam a vida pessoal de Zéquinha, que era mostrado recebendo visitas, noivando, casando-se e, após o falecimento da esposa, tornando-se viúvo. Zéquinha, daquela época, também era mostrado, sem pudores, em momentos violentos ou imorais.
Situações de perigo ou tensão vividas por ele hoje passariam pela censura de quem vive numa sociedade midiática afoita por exemplos e fórmulas para imitar. Hoje, prefere-se não mostrar o que na virada do século passado alcançou a população curitibana de forma massiva. Como menos de 20% da população da cidade era alfabetizada, as imagens tinham um poder ainda maior.
“As imagens mostram momentos em que, talvez, Zéquinha tenha entrado em desespero, arriscando a própria vida ou desistindo dela, ao enforcar-se, pendurando-se numa árvore, ou ao apontar um revólver contra a própria cabeça. Outras imagens retratam o personagem como um gatuno, ao tentar arrombar um cofre”, escreve Camila. São momentos de tensão, choque, violência que ilustram situações reais, banalizadas em qualquer periódico da época.
Lazer. Já pensou se ele não existisse?
Conseguir no jogo de bafo a embalagem que ainda não fazia parte da coleção representava um momento de lazer. É. O lazer… Este momento chave da sociedade. Um aparador, um limitador, um segurador dos recalques e maldades. Lazer, naquela época, era um elemento que andou em paralelo com o processo de autorreconhecimento nas imagens do Zéquinha.
O lazer, segundo os teóricos Nobert Elias e Erich Dunning, no livro Memória e Sociedade a Busca da Excitação, “é o espaço criado, nas sociedades em processo civilizatório ou já consideradas civilizadas, para a busca segura da excitação. Atividades miméticas, que criam, no lazer e desporto, ações, movimentos, interações que se assemelham, imitam momentos reais de violência. Contudo, na esfera do lazer, essa violência se desenvolve de forma segura, através de regras e códigos partilhados pelos participantes.”
Novo Zéquinha
Como estamos acostumados a dimensionar importâncias e fazer classificações, aqui vai minha opinião: o Zéquinha violento e imoral cumpriu função social mais nobre que o seu futuro clone surgido décadas depois, em 1979, numa Curitiba vivendo grandes transformações urbanas. Novo plano urbanístico, população sendo educada sobre as questões ambientais, veiculação da imagem de capital moderna e ecológica… Em meio a tudo isso surgiu um Zequinha cidadão-modelo, garoto-propaganda do governo do Estado.
Esta nova coleção, em vez de embalagens de balas, trazia figurinhas autocolantes, acompanhadas de um álbum. As ilustrações, que antes podiam ser compradas em vários estabelecimentos que revendiam as balas, agora eram trocadas por notas fiscais em postos autorizados. “O novo Zequinha não age de forma incorreta, violenta ou imoral. Zequinha não é mais portador de uma multiplicidade de comportamentos, não representa todos e qualquer um. O novo Zequinha é portador de um único discurso, o governamental”. Um narrador-legenda tirava a liberdade de interpretação das imagens.
O novo Zequinha “impingia uma situação e ponto final”, diz o cineasta paranaense Valêncio Xavier. “Não há participação dos colecionadores, mas sim a criação de “rebanhos de carneirinhos”, visto que “interessa à classe dominante gente que não questione e que goste de entrar em filas, que goste de ser induzida ao consumismo (que obrigue os pais a gastar só para ter a nota fiscal).”
Não é por isso que vamos nos rebelar e não pedir mais nota fiscal. Não é essa a questão. Ser um cidadão zeloso, preocupado com o bem-comum, sim, é importante. E isso não passa por um discurso governamental, necessariamente. Aliás, muito pelo contrário… É só dar uma olhada como anda a preocupação social e ambiental em tantas cidades brasileiras.
Novo Recife?
Vou tomar como exemplo, o que está acontecendo no Recife porque me chamou a atenção o trabalho de videoarte do coletivo Ocupe Estelita. De forma bem-humorada e inteligente, ele questiona a venda de terreno da união no Cais José Estelita para um grupo de construtoras. Em 2012, a prefeitura aprovou um projeto para viabilizar um condomínio de luxo por lá. O projeto, que leva o nome de Novo Recife, afasta-se da ideia de paisagem cultural e histórica do centro da cidade. Não pensa no trânsito, no engarrafamento e, muito menos, na igualdade social. Para uma ideia nova, está bem ultrapassada… Não houve discussão com a sociedade e a venda da área em leilão acabou sendo questionada pelo Ministério Público.
No vídeo, prédios viram organismos vivos, dançando ao sabor da maré imobiliária, que transforma as cidades em empreendimentos e não em espaço de convivência plural.
E se o nossa Zéquinha andasse por uma dessas cidades hoje? Que personagem ele seria? Um Zéquinha João Bobo ou ou um Zéquinha especulador imobiliário? E você ia querer a coleção completa? Ou ia ficar apenas com algumas figurinhas porque outras dão náuseas cambaleantes, só de respirar tanta ética de éter. Ética volátil. Anestesiante. Num mundo que adoece de forma recorrente. Repetidas vezes. Num jogo de regras desiguais, em que, quando se perde, não se fica apenas sem uma figurinha.
Imagens: reprodução internet