Quando o olho era impreciso e desnecessário, algo assim como o viver nosso e de Fernando Pessoa … (Navegar é preciso. Viver não é preciso…) Quando a visão era um sentido que nem existia… Ou quando o olho era apenas uma pele sensível à luz, uma superfície plana, sem destaque no corpo de minúsculos seres marinhos que viviam há seiscentos milhões de anos… Nessa época não havia predadores… Os oceanos eram calmos e a vida, simples. Ninguém precisava mesmo de olho. Até que chegamos ao ponto em que evoluir era preciso. Aí o olho foi virando um risco, uma cavidade, um olhinho, um olhão, desses de telescópio, como o que a águia tem para ver a presa a um quilômetro e meio de distância.
Como a águia abaixo, do brasileiro João Rosendo, que continua fazendo sobrevoos certeiros entre o Carnaval e a Páscoa, sem culpa de comer carne na quarentena. Culpa, essa nossa companheira injusta e cristã, nem sempre dá as caras nos momentos realmente cruciais.
Explico: porque tem gente que desenvolveu um olhar crítico e incomodado ao ser vigiado pelo olhar desse monte de gente pelada na obra “Amor e Sexus”, na imagem que abre este post, do fotógrafo austríaco Andrea Smetana, mas não ligou nem um pouco em ser vigiado pelos olhos do Morro da Providência, no Rio de Janeiro.
Olhos sobre a favela do Morro da Providência, no Rio de Janeiro
Obra interessante essa “Mulheres são Heroínas”, do fotógrafo francês JR, disseram. Até deixou o morro mais bonito. Melhor que nos olhem com grandes olhos, assim sabemos para quem estão olhando. É… Essa barreira social visual… Vai até onde a vista alcança: nós aqui embaixo e eles lá cima. Cada vez mais por baixo. Mulheres perdendo filhos para as drogas, para a violência.
Vigiar é preciso. Viver não é preciso. Nossos olhos andam atentos a tudo. Vivemos tensos e ameaçados. Faca, arma, droga, doença e… Fome. De comida e afeto. Não percebemos, mas fazemos todos parte de um mesmo balaio de dor e insegurança em que a insuficiência da vigia é flagrante. Gravar é preciso. Clicar é preciso. Viver não é preciso.
O nosso olho está doente. Já virou extensão da máquina de registrar qualquer tolo momento. Em “Câmera-olho”, acima, ele está preso ao pedestal do soro da UTI, não é Níchola Feldman-Kiss? Acho que você talvez sinta isso independente do chão por onde passe. Tripla nacionalidade – canadense, alemã e jamaicana – deve ter transformado os genes desse olhar em qualquer coisa de universal e forasteiro.
Como é bom ampliar as percepções, as visões. Que bom podermos ser, assim, raças, etnias geneticamente modificáveis. Opiniões e certezas mutáveis. Misturáveis. Por isso, lanço aqui a campanha: consuma mais diversidade. Mastigue tolerância. E cuspa os outros geneticamente modificados. Aqueles… Os transgênicos. Esses que o brasileiro Rafael Mantesso injeta ironia e desprezo. Grampeia absurdo e farsa.
Ao contrário da convivência diversa, alimentos transformados trazem, só para começar, “preocupações ambientais, aumento de intoxicações, reações alérgicas e outras doenças nos consumidores, como câncer e esterilidade, aumento na resistência a antibióticos, danos à biodiversidade, necessidade de maior uso de agrotóxicos, risco de surgimento de superpragas resistentes a todos os pesticidas, prejuízo aos pequenos produtores, e receios econômicos sustentados pelo fato de que sementes geneticamente modificadas, que são fontes de alimentação, estão sujeitas a direitos de propriedade intelectual detidos por corporações multinacionais”. (Obrigada colaboradores da Wikipédia. Esse verbete tem boas referências!)
E com referência a esse ovinho pintadinho aqui abaixo, também do Rafael, que tal fazer desta Páscoa a escada para uma mudança de atitude? Consumir menos, muito menos, chocolate produzido graças ao suor do absurdo, sem nexo, inconcebível trabalho escravo das crianças da África… Para produzir ovo para nós? Qual? O real? O do início da vida? O ovo da fertilidade? O da galinha do vizinho, que bota ovo amarelinho? Sabe, aquela gema bonita. Você olhando para gema. Ela olhando para você. Compra logo uma dúzia de ovos caipiras, frita alguns (com pouco óleo), faz também um bolo bem gostoso, se vira para não quebrar as cascas e sai pintando com as crianças.
E, se quiser um presente mais elaborado, vai atrás de uma pêssanka ucraniana, que simboliza vida, saúde e prosperidade, como estas abaixo, do Maurício Linécia. Mas, sejamos razoáveis. Não dá para deixar tudo para as pêssankas. É vigiar-se. Cuidar-se. Olhar-se. Para não sermos engolidos pelo olhão do furacão. Pelo bicho papão do ovão de chocolatão. Melhor pararmos para refletir. Refletir o exterior infinito no olhar.
Pêssankas: arte ucraniana dos ovos pintados, que simbolizam vida, saúde e prosperidade
Parar para ver o realismo mágico da obra “Espelho Falso”, do ícone da história da pintura, o belga Rene Magritte. Que a imagem refletida na pupila vire um jogo, seja um lembrete. Que puxe para o equilíbrio nesse labirinto de instável ventania na labirintite coletiva. Que nos questione sobre os limites entre as imagens externas consumidas sem critério e as internas que fazemos questão de esquecer. Boa Páscoa!
“Espelho Falso”, obra de Rene Magritte
Imagens: divulgação artistas