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Meu baobá super-herói


baobá

Lá dos tempos em que a lembrança não tem mais abrigo da memória é que devem permanecer vivos no filamento genético ou no firmamento energético esses troncos enormes, essas árvores testemunhas do que deixamos sobrar de mágico na conexão entre o real material e o sobrenatural. Acho que naquele tempo em que árvores eram adoradas, os espíritos não se incomodavam de habitá-las porque talvez soubessem que elas não seriam derrubadas num ato de nada.

Depois que vi o baobá de mestre Dicinho, na exposição Histórias Afro-Atlânticas no MASP, fui dormir querendo sonhar com a proteção da ascendência, procurando sabedoria ancestral. E achei. Os ramos do baobá se abriram num abraço, dizendo, calma, toda essa ladainha de desenvolvimento industrial, crescimento financeiro, grandes construções, carros velozes, há de ser desmascarada. Preconceito, racismo e desigualdade hão de secar e encontrar a míngua.


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Fiquei delirando no baobá que extrapolava das mãos gigantes de Mestre Dicinho. Polpa da celulose, o gesso (o crê para secar mais devagar e permitir uma modelagem melhor e menos craquelamento), o metal e os pigmentos agregavam substância e forma num baobá crescente, infinito mesmo, para tirar atenção e foco do banal. Um baobá super-herói que fagocitava com seus ramos a bandalheira absurda desse progresso falso baseado na incompreensão do porque de estar no mundo. Sustentado pela falta de clareza sobre o real valor e importância das coisas e a adoração sem questionamento aos deuses da moeda e da moda.

Quero adorar incondicionalmente um alguém mais poético e poderoso. Pode ser Orisala. Sabe aquele do mito da criação que sai moldando árvores para cada ser humano nascido? Minha tão inocente, mas conseqüente meta planilhada e esquadrinhada na teia universal daquilo que realmente importa – uma rede que quero me enredar mais e mais – é procurar onde raios Orisala moldou a minha árvore.

Quero me ver espelhada nela, assim como… Assim como… Assim como uma obra retrata o artista, como tantos que estão na exposição Afro. Mas o artista que quero falar, não me lembro de ter visto nesta exposição. É alguém que, mesmo definhando em dor, bexiga e paralisia, deixou marcas por muitas cidades mineiras. Irritado com a doença, gritava, reclamava, chorava e provavelmente se sentisse matando um leão por dia.

Negro em melhor condição social, tinha escravos negros. Era Januário quem o carregava nas costas quando ele já não podia caminhar até as igrejas para poder se inspirar.

Usava e ousava transformar árvores para expor seu credo. Do cedro, resgatava a veia viva dos Santos das igrejas. Buscava também o coração das pedras. E, nos peitos e rostos dos profetas, expressava seus pares cotidianos. Ou bichos que nunca tinha visto. Criava leões outros, imagens imaginadas, coroadas pelo desejo maior de fazer nascer algo. De libertar suas feras encovadas.

Daniel na cova dos leões, de Aleijadinho

“A terra enfartara-se com as chuvas do verão. Ao primeiro sol exalava a luxúria da fertilidade, de noite terminada, de vida principiando. Era o que ele sentia diante da pedra. Ali passar a noite. Fizera amizade com ela. Pois no seu ventre ela guarda Daniel e o seu leão. E Daniel e seu leão querem sair da pedra. Têm muito que fazer. Haviam provado ao rei e ao povo a onipotência divina. Querem repetir seu testemunho nas montanhas das Gerais. Aleijado ou não, haveria de tirá-los dali!”

Este parágrafo de parar e respirar, de parar e reler, está no livro “O Aleijadinho – O Rio do Tempo”, de Hernâni Donato, um livro lindo, em tom poético, que tive a felicidade de encontrar num sebo aqui perto de casa e que me ajuda na preparação para uma futura viagem a Minas Gerais.

Os ramos em que corre a seiva poética, nascente da vontade de Baobá
aqui em casa

Embora já tenha visto exposições sobre o nosso barroco, devo confessar com vergonha que ainda não vi uma obra de Antônio Francisco Lisboa – mais conhecido como Aleijadinho – numa igreja da sua terra natal. Não tenho especial atração por arte sacra, mas há coisas que estão acima dos gostos e preferências e se impõem como necessidade, que viram vontade e quando a gente vê já são prazer. Também não conheço o museu de Inhotim e depois da denúncia contra Bernardo Paz, por lavagem de dinheiro, baqueei e fiquei sem saber o que fazer.  Se alguém tiver um argumento que dê dignidade à visita e me convença, favor apresentar. E, já me rendendo, se quiser fazer a viagem de carro, passando pela Estrada Real, sou parceira.

Como não querer ver mais da obra de uma pessoa dessa: “E outra vez, do fundo das entranhas, onde se concentra o que parecem ser suas últimas energias, o Aleijadinho retirou chamas com que incendiar semanas de trabalho. Agarrou o carvão. Perdeu-o. Não tinha dedos suficientes para manejá-lo. ‘Ponha-me o carvão aqui, entre os cotos. Isso, agora amarre-o’.  O cordão feria. Prosseguiu. Iria até o fim. Lutando contra suas mãos. A vontade contra a carne.”

Aleijadinho acreditava que sofria porque tinha pecados. E que merecia.

Cerca de trezentos anos antes, outro artista que trabalhava nas igrejas tentava fugir da vida profana. O russo Andrey Rublev, considerado o maior pintor de seu país de ícones e afrescos, diferentemente de Aleijadinho, fazia pinturas em que predominavam rostos calmos e pacíficos.  O cineasta Andrey Tarkovsky fez um filme com o nome do pintor, disponível no YouTube.  A parte que mais me chama a atenção é a do Juízo Final. Adoro quando Rublev diz que não consegue pintar algo que vai amedrontar as pessoas e submetê-las à fé cega e submissão. Isso apesar da sua própria fé e discurso religioso. Muito bonito.

São essas coisas que me fazem querer a sombra confortadora ou, se precisar, ameaçadora do baobá gigante – que também é meu, que é nosso. Quero galhos sustentando palavras, gerando imagens que arrepiam minha alma toda vez que a poesia brota em algum lugar.


EXPOSIÇÃO HISTÓRIAS AFRO-ATLÂNTICAS
Data:
até 21/10/2018
Horário: terça a domingo, 10h às 18h e quinta, 10h às 20h (segunda fechado)
Local:
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP)
Endereço: Avenida Paulista, 1578 – São Paulo
Ingressos: adultos R$35, estudantes, professores e maiores de 60 anos R$17 e crianças menores de 10 anos não pagam

Fotos: vil.sandi/creative commons/flickr (abre), arquivo pessoal (escultura baobá Mestre Dicinho) e creative commons (Daniel na Cova dos Leões)

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