Insatisfeita com a sub-representação feminina – e, mais importante: feminista – na política institucional, a jornalista Juliana Romão e mais três amigas de Recife criaram, antes das eleições de 2018, a campanha Meu Voto Será Feminista. Seu objetivo era fortalecer candidaturas de mulheres comprometidas com a causa e conseguir conquistar aliadas que colaborassem em suas campanhas.
Mapearam 97 candidaturas em todo o Brasil, das quais 14 se elegeram, sendo duas delas coletivas, o que alçou 24 mulheres ao poder.
Depois das eleições, transformaram a campanha em um projeto para apoiar as eleitas, dando visibilidade a seus mandatos, levantar de forma permanente o debate sobre a participação política das mulheres e incidir politicamente no enfrentamento à violência política de gênero.
Nestas eleições municipais, voltaram a montar o mosaico de candidatas feministas, que agora precisam assinar uma carta-compromisso com uma agenda mínima voltada aos direitos das mulheres, desde a luta pelo aborto legal e seguro, passando por uma agenda antirracista e a revogação das reformas da previdência, trabalhista e o teto de gastos.
Juliana contou ao blog Mulheres Ativistas do Conexão Planeta, que “o sistema e o universo masculinos tentam diminuir a carreira feminina na política, o que passa por impedir sua entrada e, quando consegue, encontra dificuldade pra decolar”.
Por conta disso, essas mulheres precisam ser apoiadas enquanto candidatas e também depois de eleitas, para que permaneçam na política de forma cada vez mais qualificada.
Juliana, que é mestra em comunicação pela Universidade de Brasília, também é ativista pela inclusão linguística na política, na imprensa e no cotidiano brasileiros. “Não há, por exemplo, a palavra ‘eleitoras’. Na propaganda da Justiça Eleitoral brasileira todas nós (52% da população) somos inseridas, sem autorização, dentro da palavra masculina ‘eleitores’. Estamos falando de um direito humano fundamental, que é o reconhecimento da própria existência, pedra mestra da formação identitária”, defende.
Por que mulheres devem priorizar candidatas feministas?
As mulheres vivem angústias e opressões em comum, com camadas de violência de acordo com sua cor, renda, geografia. Mas todas, no espaço em que vivem, sabem exatamente quais são as soluções, o que faz melhorar o seu entorno.
A candidata feminista representa essas mulheres diversas. Quando a gente opta por uma candidata feminista, está escolhendo o caminho de melhoria para todas.
Se a vida fica melhor para as mulheres, especialmente as mulheres negras e de baixa renda, que são as mais vulneráveis, fica melhor também para toda a sociedade, principalmente para crianças e idosos.
Votar em feminista é encontrar uma agenda comum e embarcar junto com ela. É um processo individual e coletivo.
Como começou seu ativismo por maior participação feminina na política?
Em 2016, eu, Carol Vergolino, companheira de militância desde sempre, e Daiane Dultra, entramos juntas no movimento PartidA Feminista, que surgiu quando algumas feministas discutiam a possibilidade de um partido feminista no Brasil. Também nos aproximamos de Bia Paes, que chegou pouco depois, e criamos uma relação de amizade e afinidade. Buscávamos um lugar para falar sobre sub-representação e violência política contra mulher.
Neste mesmo ano, aconteceu o golpe, a violência máxima contra Dilma, única mulher presidenta na História do país. Não podíamos mais ficar à margem do debate. Queremos mais mulheres diversas – e feministas – na política.
O sistema e o universo masculinos tentam diminuir a carreira feminina na política, que passa por impedir sua entrada. Se ela consegue entrar, encontra dificuldade de se manter naquele espaço, que tem uma lógica muito opressora, masculinizada e racista. É um ambiente homogêneo e elitizado, que rejeita a diversidade, a maternidade, o discurso feminino, violências que acabam abreviando a carreira da mulher na política.
Quando quer ser candidata, encontra barreira na família, nos amigos e nos partidos. A sub-representação não tem a ver com qualificação, é um problema da democracia.
O que levou à criação do ‘Meu Voto Será Feminista’?
O projeto nasceu na Partida, mas nos descolamos dela – que é nossa principal aliada até hoje – por motivos operacionais. O Meu Voto Será Feminista começou como uma campanha para que mais mulheres fossem eleitas na campanha de 2018. É um projeto para fortalecer a ocupação de mulheres feministas na política institucional.
Teve inicialmente três fases. Na primeira, realizamos debates sobre a participação política da mulher, a cultura do voto feminista, falando sobre o tema entre elas. Fizemos também o primeiro lambidaço (mandamos cartazes lambe-lambe para todo o país), que hoje é a ação que mais gostamos de fazer.
A partir desse debate, mapeamos as mulheres que estavam disponibilizando seus corpos para a luta. Fizemos um mosaico de candidatas, com biografia e foto nas redes sociais. Quando entravam no mosaico, recebiam um kit com informações para fortalecer a candidatura, entre as quais como arrecadar recursos e como se comunicar.
A terceira fase foi reunir aliadas para as campanhas. Passamos a juntar eleitoras e candidatas. Sempre há lugar para a mulher feminista na política, não é apenas a candidata que é importante. As aliadas diziam como poderiam colaborar, em qualquer área. Fazíamos as apresentações e elas passavam a atuar juntas.
A campanha teve uma adesão maior do que esperávamos, contamos com muitas apoiadoras, adesão nas redes, espaço de mídia, foi muito bonito e inspirador ver o resultado. Conseguimos mapear 97 candidaturas, das quais 14 se elegeram, sendo que duas delas eram coletivas, o que alçou 24 mulheres ao poder.
Todas as candidaturas juntas somaram quase 10,8 milhões de votos feministas em candidatas com diversidade. Havia mulheres negras, indígenas, com deficiência, candidatas mais velhas, jovens, LGBTs. Para as candidatas, estar no mosaico foi importante, relataram que foram empoderadas.
Hoje também coordeno a comunicação de uma das candidaturas coletivas vitoriosas do Mosaico, as Juntas, na Assembleia Legislativa de Pernambuco. O ganho de aprendizado no legislativo tem sido imenso. É a política de perto, na veia!
Como deram continuidade ao movimento após as eleições?
Ampliamos a campanha para um projeto em 2019, pela necessidade de apoiar as eleitas, pois permanecer é um desafio imenso para elas, que precisavam ser fortalecidas para enfrentar a violência que enfrentariam. Passamos a divulgar seus projetos de lei e a fazer mobilização sobre suas atividades. A ideia é mostrar que ao lado delas há um grupo de mulheres acompanhando, que elas não estão sozinhas.
Isso dá visibilidade social para as ações que elas incidem e ajuda a transformar o olhar sobre as mulheres no poder, tanto de maneira geral quanto para as meninas, que precisam ver mulheres nesses espaços para saber que é possível chegar lá, para que também sintam vontade entrar na política. É uma mudança cultural.
Não dá para só para dizer para as mulheres “venham se candidatar” e as deixar sozinhas nesse lugar insalubre. Elas precisam estar preparadas para isso. Sabemos que a mulher faz política o tempo todo, em casa, no trabalho, administrando a gestão do cuidado, que lhe recai como mais uma obrigação na sociedade, mas o institucional é diferente, pois ainda não estamos com desenvoltura, justamente por estarmos sub-representadas. Se temos poucas, então são poucas que experienciaram, por exemplo, o desafio de montar uma equipe, ou a lógica de funcionamento, que não está no regulamento. Esse aprendizado precisa ser multiplicado, uma puxando a outra pra que todas avancem e cheguem mais qualificadas.
Também atuamos junto aos poderes Legislativo e Judiciário em favor de cotas e para evitar que os partidos as fraudem ou coloquem laranjas, para manter o lugar masculino de poder. Isso não nos interessa. Queremos que a mulher chegue ao poder, com poder. Não como marionete.
Qual é a estratégia para as próximas eleições municipais?
Criamos um novo mosaico e, nas primeiras semanas, já há mais mulheres que em 2019, até porque estas eleições são municipais e têm um outro nível de relação entre candidatas e aliadas, que pode ser muito mais próxima. Desta vez, condicionamos a participação no mosaico à pactuação de uma carta com o que é inegociável para uma candidatura feminista e a candidata precisa assinar para entrar.
Não adianta apenas ter mais mulheres na política, precisamos que tenham uma agenda feminista. Há mulheres que estão na política, mas não têm agenda para fortalecer outras mulheres.
Também estamos em articulação com outras instituições, como os tribunais regionais eleitorais, Ordem dos Advogados do Brasil, movimento negro, Instituto Marielle Franco, entre outros. Queremos mais equilíbrio, com mais mulheres negras, indígenas, LGBTs, com deficiência.
Além das redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter), temos um site, onde candidatas e apoiadoras podem se inscrever, e fazemos um trabalho de relacionamento entre candidatas e aliadas via WhatsApp.
É só ter talento (todas temos) e disponibilidade para apoiar. Depois da inscrição, fazemos o cruzamento entre elas. Em 2018, tínhamos 400 aliadas, das quais aproximadamente 200 continuaram no interstício, mas achamos que esse número vai subir muito. Estimamos conseguir mais de 500 candidatas.
O que levou você a ser feminista?
O feminismo sempre esteve em mim, mas não muito nominado, talvez como percepção de desigualdade. Acho que ele veio mais forte com a maternidade. Sou de Recife, mas depois de formada fui com meu companheiro para Brasília atuar como jornalista e fazer mestrado, e também comecei a dar aula. Gostei de morar lá, mas quando tive filhos conheci a solidão de um lugar novo, da própria maternidade. Não tinha apoio da rede familiar, o que gerou reflexões sobre o peso de ser mãe, que recai muito nas costas das mulheres.
Tenho dois irmãos, já sofria em casa as diferenças, mas reagia bem em minha defesa. Mas quando nos tornamos mães, a ficha cai, todos os pesos se somam a esse, que é vitalício. É uma fase bonita, poderosa, mas muito romantizada socialmente. A vida real não tem glamurização. Há muita doação, sentimento de culpa quando se volta a trabalhar, o mundo desaba. A questão de gênero se acentuou.
Tenho dois filhos (hoje com 13 e 10 anos) e um enteado de 24, todos meninos. Ter filho homem também traz a responsabilidade de mudar essa dominação estrutural, tentar mexer nas cabeças, nas desconstruções que posso influenciar.
Com isso, fui me aproximando do movimento feminista e passei a entender um monte de coisas que não compreendia, ou não associava de maneira tão direta com o gênero. É sempre difícil enxergar que a vida é mais dura e pesada para mulheres, como a divisão injusta do trabalho doméstico, um trabalho não remunerado que permite que todo o país funcione.
O feminismo ainda é um nome pejorativo, é um processo que leva tempo para mudar, mas agora a sociedade está mais preparada. Por exemplo, o feminicídio sempre existiu, mas era minimizado como “crime passional”. Hoje se compreende mais, pelo menos melhorou o entendimento. É um caminho inevitável.
Atualmente, uma chapa de candidatura apenas masculina recebe crítica. Em algumas, ainda colocam mulheres apenas para dizer que há diversidade, mas, em breve, será por qualificação.
Como vive o feminismo no dia a dia?
Sou mulher, vou para a rua! Mas acredito no ativismo em tudo: o que você fala, o que você compra, quem acolhe. Também encontrei espaço de militância social em sala de aula, como professora de jornalismo, mostrando como a mídia se coloca, a linguagem de gênero na imprensa. Como professora de trabalhos de conclusão de curso (TCC) podia escolher certo número de estudantes para orientar e fazia escolhas a partir de gênero, raça, classe social.
Às vezes, até optava por projetos mais frágeis, nos quais via que pessoas tinham mais dificuldade. Eu sabia que podia contribuir muito na orientação de construção daqueles projetos, fortalecer as alunas e os alunos na matéria em si, mas também compartilhando visão política, afeto, estímulo.
Quando voltei a Recife, continuei dando aulas e comecei a participar mais ativamente do movimento feminista. Percebi que, na política, é onde as mulheres estão mais ausentes, não por que querem, mas por todas as violências que já conversamos. E política é tudo, não é? Busco gerar reflexões até na relação com a escola dos meus filhos. Por que é reunião de pais e não de pais e mães? Brigo pela inclusão linguística.
O que é inclusão linguística?
É pensar a língua como ação, falar é fazer. Então, precisamos inserir todas as pessoas no ato de falar e de nos manifestar. Há palavras e expressões racistas que usávamos e não usamos mais, a partir da reflexão sobre a violência que representam.
Em relação a gênero, temos um padrão gramatical androcêntrico, que utiliza o gênero masculino falsamente como genérico, como se o homem fosse medida de toda a humanidade. A língua reflete a sociedade. Se a sociedade é sexista e machista, a língua também é. Podemos fazer transformação pela linguagem.
Por exemplo, nas eleições o Tribunal Superior Eleitoral só usa vereador, deputado, governador, prefeito, presidente. É como se soubesse que um homem vai ganhar! Mas sabemos que não é isso, é achar que falando no masculino está incluindo todo mundo. É um vício cultural, dos aprendizados históricos onde os homens dominam o mundo desde sempre. Precisamos transformar o miúdo e o graúdo ao mesmo tempo.
Desde 1979, existe legislação de que é obrigatório ter gênero flexionado em diplomas: pilota, fiscala, presidenta, são todos termos que existem. Em crachás, costumam colocar assessor, mesmo que seja uma mulher. No uso comum, se houver 300 mulheres e dois homens em um lugar, vão dizer “eles” estão ali. Em eleições, podemos usar candidatura no lugar de candidato e candidata. Não podemos baixar a guarda. É pela linguagem que somos e existimos.
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Edição: Mônica Nunes
Foto: arquivo pessoal