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Vera Cordeiro: há 31 anos a médica promove a saúde combatendo a pobreza

Vera Cordeiro: há 31 anos a médica promove a saúde combatendo a pobreza

Muito cedo, no início de sua carreira, a médica carioca Vera Cordeiro percebeu a importância dos determinantes biopsicossociais do adoecer, principalmente nas famílias mais vulneráveis. Continuou seu trabalho no Serviço de Pediatria no Hospital da Lagoa, no Rio de Janeiro, mas saiu dos muros do hospital para atender as pessoas também do lado de fora, no vizinho Parque Lage

Ela entendeu que era necessário ampliar a escuta médica e, a partir dessa experiência, fundou o Instituto Dara, uma organização da sociedade civil que atua para promover a saúde e o desenvolvimento humano por meio da implementação e da disseminação de uma abordagem integrada de combate à pobreza.

Em 31 anos de existência, o Dara já transformou diretamente a vida de mais de 85 mil pessoas no Brasil, além de disseminar sua metodologia pelo mundo. Reduziu significativamente as reinternações de crianças doentes, ampliando a renda dos responsáveis entre outros impactos positivos na vida das famílias.

“Senti que precisava ir para uma área de desconforto e criar algo novo que apaziguasse, minimamente, a dor daquelas famílias ou, muitas vezes, colocá-las em outro patamar”, contou ao Mulheres Ativistas, do Conexão Planeta

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O que te moveu a fazer esse trabalho?

Desde que me formei em medicina, em 1975, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, me interessei pela pessoa por trás da doença: por que João enfartou? Por que Maria está com gastrite? Por que aquela criança teve pneumonia?

Queria saber quais eram os determinantes biopsicossociais do adoecer, porque a medicina, não só no Brasil, mas no mundo, é muito focada nos aspectos físicos do adoecer. Tive a sorte de estudar com três grandes mestres da medicina psicossomáticaJúlio de Mello Filho, Abraham Eksterman e Danilo Perestrello.

Durante a anamnese médicaque é quando se faz a primeira entrevista com o paciente -, me interessava em entender quem é aquela pessoa, como está sua vida emocional, afetiva, financeira, onde mora e qual sua escolaridade.

Trabalhava há três anos em clínica médica no Hospital da Lagoa quando entendi que precisávamos ter um setor voltado para medicina psicossomática, que só existia em hospitais-escolas na época, isso é, ligados a universidades.

Assim, em 1979, fundei esse setor no Hospital da Lagoa e meus amigos médicos começaram a encaminhar pacientes dos quais completávamos a anamnese médica com dados como: “Ele é morador da Rocinha? Está separado da mulher que foi morar no Nordeste? Os filhos estão com a avó? Ele está desempregado?”.

Toda sexta-feira, reuníamos com um grupo de médicos e estudávamos profundamente a vida do paciente. Esse trabalho já era conhecido como grupo Balint. Tivemos o caso de uma secretária do hospital que era hipertensa e tomava oito medicamentos e a pressão continuava alta. Vimos que, se não entrássemos na história de vida dela, continuaria hipertensa e com maior número de remédios.

Criamos, então, grupos de hipertensos com os quais fazíamos exercícios de bioenergética, procurávamos ajudar o paciente a meditar, relaxar e se autoconhecer. Pouco a pouco, foram diminuindo o número de remédios e alguns chegaram a não precisar mais fazer o uso do medicamento. 

Apresentamos os resultados em um congresso de Cardiologia para mostrar que a medicina não pode deixar de considerar os aspectos psicossociais do adoecer.

O que aconteceu a partir disso?

Estava satisfeita com esse trabalho até que fui designada para trabalhar no Serviço de Pediatria do hospital. A realidade das crianças vulneráveis internadas nesse serviço me deixou muito perplexa, já que venho de uma classe média alta, com filhas saudáveis, sem precisar enfrentar todos os desafios que as mães dessas crianças enfrentavam diariamente.

Compreendi que existia um ciclo vicioso: miséria, internação, reinternação e morte. Por exemplo, a criança é internada com pneumonia, tem alta curada ou tomando medicação oral em casa, três meses depois volta com gastroenterite e, assim, vai trocando de doença.

Vera Cordeiro: há 31 anos a médica promove a saúde combatendo a pobreza
“Muitas vezes, a doença é a ponta do iceberg”, conta Vera Cordeiro – Foto: Instituto Dara/divulgação

A verdadeira causa da doença muitas vezes é a condição de vida à qual está submetida. Ela mora em uma casa em que chove dentro, sofre violência doméstica e não se alimenta bem. A doença é a ponta do iceberg.

Na verdade, nós, médicos, ‘’medicalizamos’’ a pobreza, pois essa, sim, muitas vezes é a verdadeira causa. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), um terço das mortes diárias no planeta está relacionada a doenças ligadas às condições precárias em que as pessoas vivem.

Foi essa experiência que levou à metodologia Dara?

Sim, no início éramos um grupo de 20 voluntários, eu mesma fui voluntária durante 12 anos. Atendia de manhã no Serviço de Pediatria e encaminhava as crianças e suas famílias vulneráveis para o Parque Lage. Lá, ouvíamos atentamente as mães das crianças e estabelecíamos um plano de ação familiar, ou seja, além de darmos alimentação e remédios, pactuávamos com as famílias a realização de cursos profissionalizantes que as levariam no futuro a autonomia e dignidade. 

Vera Cordeiro: há 31 anos a médica promove a saúde combatendo a pobreza
Sala de espera para o atendimento no Instituto DaraFoto: Instituto Dara/divulgação

Fazíamos de uma forma muito simplória. Atualmente, temos um sistema extremamente robusto na internet, que ajuda a acompanhar as famílias. Essa metodologia e o sistema foram criados por mais 1.600 voluntários, centenas de funcionários, 5 mil horas pro bono da McKinkey e outras instituições como Ashoka, Avina, Schwab, Linde/White Martins e Skoll.

O Dara foi se profissionalizando ao longo dos anos. A palavra Dara significa em sânscrito estrela guia. Como a pobreza é multidimensional e o trabalho do Dara é multidisciplinar, nós vamos no cerne da inclusão social.

Por isso fomos considerados a 20ª melhor ONG do mundo, segundo a Thedotgood, organização de mídia independente em Genebra, Suíça, que ranqueia, todos os anos – com critérios de transparência, auditoria, eficácia da metodologia e poder de expansão – as melhores organizações não governamentais.

Vera Cordeiro: há 31 anos a médica promove a saúde combatendo a pobreza
As crianças também são contempladas pelo projeto em seu desenvolvimento, colocando-as em outro patamar e reduzindo a reincidência de doenças – Foto: Instituto Dara/divulgação

Somos a melhor ONG da América Latina há dez anos consecutivos. Vamos completar 31 anos em 25 de outubro e ganhamos mais de 50 prêmios nesse período.

Quantas famílias já foram beneficiadas pelo Instituto Dara?

Diretamente, aproximadamente 21 mil famílias e indiretamente mais de 1 milhão de pessoas no mundo, além de termos nos tornado política pública em Belo Horizonte, em 2009.  

Como funciona a metodologia na prática?

A família chega até nós encaminhada por três hospitais públicos (Hospital da Lagoa, HemoRio e Maria Amélia), duas escolas públicas e um Centro de Referência Social (CRAS).

Recebemos um responsável pela família, além de seus filhos, e pactuamos metas com esse responsável. Ele receberá remédios, curso profissionalizante, melhorias na moradia, orientações sobre os benefícios a quem tem direito, entre outros.

Em contrapartida o responsável deverá cumprir as metas pactuadas entre ele e a instituição. Caso esse pacto não seja cumprido, poderá ser desligado do programa.

Existe avaliação prática dos resultados?

Concorremos ao Prêmio da Skoll FoundationSkoll Awards – e passamos por nove meses de entrevistas para comprovar quão eficiente é a nossa metodologia. Conseguimos provar a significativa diminuição das reinternações no hospital da Lagoa.

Assim, em outubro de 2006, ganhamos o prêmio de mais de um milhão de dólares e expandimos o Dara para seis estados do Brasil, porém também medimos o impacto de longo prazo de nossa metodologia na vida das famílias, o que poucas organizações conseguem.

Fizemos uma parceria com a Georgetown University, que enviou pesquisadores de pós-graduação em políticas públicas para fazer essa avaliação. A White Martins financiou a pesquisa, na qual professores de pós-graduação dessa universidade e um de seus alunos escolheram, de forma aleatória, pouco mais de 100 famílias que tiveram alta do Dara, entre três a cinco anos após o programa e um grupo de controle do Hospital Jesus, que não passou pelo instituto.

O resultado foi mais impressionante do que eu imaginava e foi publicado no The New York Times. O estudo comprovou que, em relação às famílias que foram atendidas pelo Dara, as reinternações hospitalares caíram 86% e a renda praticamente dobrou. Antes do Dara, 28% tinham casa própria, de três a cinco anos depois, 50% tinham casa própria. 

Fizemos ainda uma pesquisa qualitativa onde perguntamos: “se houver outro choque traumático na sua vida, como algum filho ter câncer, sua casa desmoronar etc., o que você faria?”. As famílias que não passaram pelo Dara disseram: “vou rezar”. No grupo que passou pelo Dara, a resposta foi: “não vou precisar do Dara novamente, porque sei exatamente como proceder”.

Das famílias que têm alta, menos de 3% retornam à instituição.

Como esse ativismo impactou sua vida pessoal?

Vim de uma família extremamente solidária, meus pais eram muito compassivos e passaram esses valores para mim e meus irmãos. Meu pai era diretor da Fábrica Bangu, a maior fábrica de tecidos brasileiros nos anos 1950, e minha mãe criou uma escola em Bangu. Era uma família muito empreendedora e criativa.

Tenho um marido extremamente parceiro, tanto na vida pessoal como no Dara, duas filhas maravilhosas, quatro netos. Tive tantas bençãos na vida que percebi que precisava de alguma forma transformar a realidade de pessoas vulneráveis.

No início, reuni amigos e familiares para ajudar coletivamente a criar essa instituição. O dinheiro vinha a conta gotas. Sofri também bastante por ficar longe das minhas filhas e do meu marido. O preço familiar foi altíssimo. Porém, à medida que elas cresciam, elas e meu marido passaram a me ajudar muito na construção da instituição. “A ativista Vera” pagou um preço alto, mas pagaria novamente, pois deu um significado para minha vida e para todos que construíram e constroem essa organização.

Como a metodologia Dara poderia ajudar mais pessoas?

Bill Dayton, fundador da Askoka, diz que o Brasil é um celeiro de empreendimentos sociais, só que não têm visibilidade, o país não tem cultura de filantropia. Por isso, o que eu queria é que essa metodologia se tornasse política pública no Brasil, assim como aconteceu em Belo Horizonte. 

No Brasil, existem 8 mil CRAS (Centro de Referência de Assistência Social). Se todos tiverem a eficiência do Dara e de outras instituições que promovem a inclusão social, a pobreza estrutural vai diminuir muito e, quem sabe, poderemos viver em um país com menos desigualdades sociais, um país mais justo.  

Edição: Mônica Nunes

Foto (destaque): arquivo pessoal

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