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Ganhar asas. É demais para nós?

atores vestindo asas

Queria voar. Eu sei, você também…  Não? Tem medo de vertigem? Calma, se você fosse transformado em pássaro, isso passaria. Passaríamos, como passarinhos, a ter as características dos bichos. Viveríamos na Cidade das Aves, imaginada pelo grego Aristófanes, no século V antes de Cristo. Escaparíamos (tentaríamos ou teríamos a ilusão de que isso é possível) da corrupção, da malandragem, dos impostos escorchantes, que retornam para nós em forma de serviço público mergulhado no mar da baixa qualidade.

De rasante em rasante, sobrevoaríamos impávidos essa terra culpada dos nossos males, causadora de todo infortúnio e infelicidade. Essa terra que produz fome, dor, desgraça. O antropocentrismo apavorante não seria mais questionado, nem responsabilizado. Como se hoje fosse motivo das reflexões centrais do homo-teimosus que bate o pé para afirmar a insustentabilidade autodestrutiva…

Bate o pé e  bate o pé… Bate tanto que esmigalha… E o pó já e outra coisa. Transforma-se numa coreografia fandangueira, uma tamancaria caiçara ritmada, fincada no chão da tradição. Foi isso que fez o diretor de teatro Thadeu Perrone: uniu num mesmo espetáculo – As Aves – ar e terra, asas e raízes. A dúvida, a tensão, a distensão. A tentativa de alcançar o céu, de virar Deus. Ou, pelo menos, de ser uma delas, uma ave.

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O palco virou espaço para imaginar um novo mundo. Lá a língua das aves, às vezes, lembra a língua da gente. Um grasnar, um pio, um canto vira um quase “vamos?” na sonoplastia de Ulisses Galetto. É um convite para escapar numa dança com a cabeça nas nuvens.

A peça* estreou, em Curitiba, tendo no elenco os atores Ronnald Pinheiro, Marwem HD e Marcelina Fialho, que foi substituída pelo ator e coreógrafo Zé Ronaldo, também responsável pela preparação corporal e tamanqueado.

O cenário greco-caiçara é do mestre fandangueiro Aorelio Domingues e a iluminação de Rodrigo Ziolkowski. Os figurinos, maquiagem e máscaras ficam por conta de Mariana Zanette, que junto com Aorelio Domingues, Poro de Jesus e Gilvan Santo Amaro fizeram a criação dos adereços. Os dois personagens que tentam por toda lei virar ave, até conseguirem, são conduzidos pelas gralhas azuis (em situação preocupante quanto ao risco de extinção).

E como elas voam? De uma forma tão lúdica, poética e cômica que dá vontade de subir no palco e entrar na correria atrás delas. Vou descrever como é porquê não encontrei foto: os atores vestem o pássaro-fantoche numa das mãos, levantam bem o braço e saem loucos atrás do fantoche desembestado, pedindo para o próprio braço voar mais devagar. Para divertir criança e encantar adulto, que se deixa sensibilizar pelas não funcionalidades líquidas e certas da vida.

Falando sobre as comédias de Aristófanes, o filósofo e sociólogo Adorno faz a seguinte citação: “na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens”.

O alvo, o objetivo, o fim de quem quer se transformar em ave é a liberdade. O engraçado é que o Rei Tereu, ao trair a esposa com a cunhada, vira águia. A mitologia grega conta que as duas mulheres se vingaram e também foram transformadas em pássaros.

Fico aqui me questionando o fato dos Deuses premiarem com asas o que se considera erro humano. . . Achou Zeus que estaria prendendo os humanos no corpo das aves? Não saberia mais o que fazer com os eles? Seria essa a última tentativa de colocá-los no trilho? Dar tanta liberdade, mas tanta, que ela surtiria o efeito contrário? Eles acabariam  por se autoanalisarem, por se auto-cercearem e se colocariam nas suas próprias gaiolas?

*A peça As Aves de Aristófanes estará nas cidades paranaenses de Jacarezinho, em 28/09 e Balsa Nova, em 06/10. 

Fotos: David D’Visant

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