Os vários músicos que me inspiram a compor esse texto podem se sentir injuriados por aparecer ao lado de saquinhos e montinhos de cocô. Mas, reconsiderem porque a intenção é boa e esse cocô é produzido por quem nem de longe faz as merdas que humano faz. É cocô de ser inocente, amigo fiel, companheiro. Bicho que nasceu para ser livre, feito imaginação de músico. Que não tem culpa de viver encaixotado em apartamento e de ter seus horários para fazer as necessidades fixados por ritmo alheio. Tô falando do bicho ou do músico?
Quem acompanhava meu outro blog, o Nunca precisou de chão firme, deve estar se perguntando: ué, mas ela já não falou sobre isso? Pois, explico. É que as coisas não mudaram muito, o assunto continua me preocupando e surgiram outras ideias.
Para falar do cocô sem ranço, de bicho de espírito manso que, quando ataca, é para se defender vou me valer da massagem auditiva estomacal que o percussionista Fábio Pascoal fez nos porquinhos de borracha que soltavam punzinhos muito compassados no palco do show, em homenagem aos 82 anos do pai Hermeto Pascoal. Que bom que se negaram a defecar no palco. Por certo sabiam que os músicos não tinham trazido saquinhos para catar a sujeira. E mesmo que tivessem, sempre pairaria no ar (ou deveria) a culpa de mandar para o lixão mais plástico.
Ainda que a fabulosa e oportunista indústria tenha criado agora saquinhos que se degradam mais facilmente, o dinheiro nos bolsos do brasileiro médio desaparece mais rápido e, mal dá para comprar o papel higiênico nosso de cada dia.
Aliás, papel higiênico (do mais barato) seria uma boa alternativa aos saquinhos plásticos. O cocô, abarcado no papel lixa, seria transportado no elevador até o sanitário, diante do nariz torcido e do muxoxo de incompreensão dos que não têm cachorro e não estão nem aí para a natureza.
Mas, se isso acontecer, você dá descarga, se joga no sofá e tenta esquecer ouvindo o acordeonista João Pedro Teixeira tocar a bela música com inspiração que veio da época em que fez turnê na Itália e foi apresentada no show em homenagem ao Hermeto em que ele próprio não foi e não deu muita satisfação…
Se eu tivesse mais apresso à atualidade dos fatos, ao jornalismo, eu falaria da música do Dominguinhos que os alemães quiseram que o João Pedro tocasse na turnê recente que fez para eles. É muito bonita. Porém, a verdade é que foram os acordes da outra música que me fizeram deslizar para aquele limbo gostoso da emoção pura, daquela coisa boa, boa para… cachorro, já caindo numa expressão que me devolva à discussão sobre o que fazer com toda a merda que de tão plástica foi parar em museu.
O Coletivo Gelatin, de Viena protagonizou o fechamento da Fundação Liechtenstein, com a exposição gigante, na foto que abre este post. Não é perfeito para resumir o fechamento de uma instituição de arte?
A trilha sonora poderia ser do Quinteto de Cordas que tocou as músicas do Hermeto ou se você prefere sopros, também pode procurar pela cidade o trio de saxofones A Plenos Pulmões, nome tirado do poema do russo Maiakovski que começa assim (olha a merda da mera coincidência):
Caros
……….camaradas
………………….futuros!
Revolvendo
……..a merda fóssil
…………………….de agora,
……perscrutando
estes dias escuros,
talvez
……………perguntareis
………………………..por mim. Ora,
começará
……………..vosso homem de ciência,
afagando os porquês
…………..num banho de sabença,
conta-se
……..que outrora
……………um férvido cantor
a água sem fervura
……………………..combateu com fervor
Professor,
……….jogue fora
……………..as lentes-bicicleta!
A mim cabe falar
…………….de mim
…………………..de minha era.
Eu – incinerador,
……………. eu – sanitarista,
a revolução
………………..me convoca e me alista.
Então ativistas modernos, incinerar também é uma saída. Tenho um amigo que tem cinco cachorros grandes. A quantidade de cocô é um arsenal, ainda mais se colocada em plástico. Consciente, ele resolveu ir colocando tudo num latão e cobrindo com cal. O material faz a papa endurecer e livra do mau cheiro e moscas. Quando o recipiente enche, o cara vai para um parque e queima. Sim, tem o problema da fumaça na atmosfera, mas eu ainda prefiro essa solução. Detalhe irônico do destino: ele diz que o cheiro é de churrasco.
Será que os donos do cocô se enganam com o odor que sai do fogo? Ê bicharada que não premedita, não milita. Qualquer coisa, se estica. Se livra da tensão.
Referência e vibração sem diapasão. Essa naturalidade bem poderia incendiar o humano. Eu mesma fui puxada para essa chama alternativa no show do Ímã, que convidou a cantora argentina Soema Montenegro para o mesmo palco. Ela entrou tocando instrumento de percussão aquecido em fogueira acesa na entrada. Solução caseira para driblar o frio curitibano, fazer o som reverberar mais e entrar por todos os vãos e frestas da alma. Esse Ímã é um agregado novo – tem bem uns oito no palco – de gente boa da melhor qualidade tipo Melina Mulazani e Luciano Faccini. Eles gravaram juntos Uma História Úmida para fazer você ir conversando com suas vontades de incêndio. Para fazer pairar introspecção sem cara de egoísmo. Vontade de equilíbrio entre imagem e palavra. Coragem para lavrar o caminho da lava. Ou lavar o lavabo, o que para mim sempre foi difícil, ainda mais nesse frio.
Para o show do Imã convidaram a Soema porque são fãs dela. E a hora que você clicar nesse link e ouvir os discos também vai ficar. É música que vem do âmago, lá de onde o buraco do estômago encontra a emoção e faz a gente girar para se desencontrar das couraças. Tem horas que é tão bonito que dói. Ui… Dá um frio no estômago que pode até jorrar numa diarreia mental, caganeira estrutural sem nem saber que é medo primordial de um, sei lá, sentimento banal. Vou pra Ilha do Bananal. Pra me acabar de só babar. Bah, que delícia. Bach, que delícia tocado pelos saxofones. Um Bach não religioso nas Trio Sonatas. Sem órgão de igreja. Mesmo porque gente que toque repertório para órgão em Curitiba está virando raridade. O curso da faculdade de música da cidade fechou porque não havia procura.
A Plenos Pulmões já passou por várias formações. O cabeça é Rodrigo Capistrano. Com pulso, ele mantém o projeto de divulgar esse repertório de Bach. A transcrição do teclado para o sax deu trabalho. Para substituir o lado esquerdo das teclas, Rodrigo Capistrano emprestou seu sax soprano; o sax alto de Simon Mahieu (o mais novo integrante francês que veio morar em Curitiba enrrabichado por uma atriz da terrinha) fez às vezes do lado direito e o sax barítono de Micael Felipe da Silva foi para o lugar dos pedais. Tudo bem integrado e embalado pela competência musical.
E voltando à cal. Como você não vai querer acumular a cocozada no apê, tenta aquelas embalagens de papel para pão. Usa uma para pegar o montinho e outra para colocar dentro. E vai jogar lá na lixeira? E o coitado do lixeiro, Karen? Ah, mãe, eles estão de luva. E o cheiro deve ficar pior com o plástico porque aquece mais. E se os condomínios pensassem numa cocô-lixeira ou numa bio-cocô-lixeira para poder jogar tudo lá e cobrir com cal? Que tal? Vamos começar a se mexer gente. Hora de acender a chama. Na merda que tá, não dá para ficar. O pior, para minha profunda frustração, é que ainda não vi esse meu palavrório todo mudar nem a rotina da minha mãe com o Paco. Mas, eu não desisto dessa e de outras batalhas pela mãe terra, pelos filhos sem terra.
- Eu devo ter atiçado a sua curiosidade. Ficou com vontade de ouvir as canções que eu citei, né? Calma! Tentei conseguir a tempo os vídeos dos shows (tinha gente lá gravando os dois). Mas, o pessoal não conseguiu aprontar em tempo. Resolvi não esperar para postar. Quando o material chegar e eu colocar aqui, aviso pelas redes. Acho que ainda vai uma semana…
- Essa overdose de shows a que me impus para não ter que ouvir narração de jogo de futebol aconteceu em duas casas culturais: Casa Heitor Stockler que todos os sábados, às 11 horas, mantém o Acordes na Casa, com entrada gratuita, e na Casa 4 Ventos que tem apresentações muito legais a R$15, como a do Imã e da Soema. E fica ligado porque a argentina continua em Curitiba e vai fazer mais duas apresentações no Portão Cultural e no Palco dos 5 Sentidos. Ah! Vale a pena também acompanhar o Solo Música, que, todo mês na Caixa Cultural, leva ao palco artistas brasileiros e internacionais de diversos gêneros musicais a R$20. E como os artistas mesmo costumam desejar entre eles: merda! Muita merda para vocês que ajudam a gente a levar essa vida!
Fotos: divulgação Coletivo Gelatin