Afeitos à funcionalidade quadrada do que jeito que somos, é bem capaz de morrermos acreditando que grampo de roupa é para, claro, segurar as peças de vestuário nos varais esticados por aí.
Não, minto… Esticados por aí, cada vez menos. São é fixados por bucha e parafuso com a utilização daquela barulhenta furadeira. Drrrrrrr… Cuidado para não pegar o cano. Ihhh. Tem coluna. Depois dos cuidados tomados, temos lá garantido o nosso passaporte para o cotidiano – do abrir até o fechar de olhos. Afinal, como viveríamos sem poder secar as nossas preciosas peças para cobrir, até quando dormimos no escuro, sem ninguém para ver, aquelas partes que uns e outros chamam de vergonhas? Que vergonha… Deixa pra lá. Por enquanto.
Entendo que você já tenha na sua máquina a função secar e que o varal esteja sumindo, em sua opinião, mesmo porque, você dirá, a lavanderia está com os dias contados nas moradias empilhadas que sobem indiscriminadamente por terrenos antes arborizados, que rogavam para virar parque, praça, tá bom, um corredorzinho com umas árvores e uma grama para os pobres dos cachorros não terem que urinar no concreto das calçadas da classe média. Ou para os garotos que saem das baladas não acabarem se aliviando na porta de algum prédio na falta de um bom tronco onde despejar o resultado da noitada.
Se pendura a conta do bar, essa moçada, eu não sei. A roupa lavada no varal, se pendura, também tenho minhas dúvidas. Deve achar que lavar camiseta vomitada é trabalho para a mãe. O que sei é que, a partir de agora, quando eu for lavar roupa e sentir saudade dos grampos de madeira vou recorrer à arte. É que – você já deve ter percebido –, ainda que os varais e os quintais não estivessem em vias de extinção, essa história de morar em apartamento e não secar as peças ao ar livre, ao sabor do vento e do sol, vai tornando os grampos descartáveis.
Mas, graças ao artista chileno Manuel Villagra, os grampos entraram num saudável e lúdico desvio de função.
Não penduram mais, necessariamente, nossas imprescindíveis coberturas. Quem sabe devessem mudar de vez de finalidade e nos libertar do fardo dela. Da vergonha. Essa vergonha que aprisiona e moraliza. Que transforma arte questionadora em estandarte escuso e obscurantista do puritanismo e da intolerância doente. E leva um curador de exposição como o Gaudêncio Fidelis para uma convocação eleitoreira de uma CPI daquele senador (prefiro nem dizer o nome) que se prevalece do poder para criar uma investigação parlamentar de validade duvidosa e difamatória.
Enquanto escrevo aqui me chegam as notícias sobre queijo e biscoitos na cueca. Que coisa! Quanta funcionalidade para uma só peça. Nem somos tão quadrados assim… Só para me contradizer…
Bem… Voltemos ao nosso artista que inspirou este post… Voltemos a ele que nem se considera artista…
Traduzo aqui um parágrafo em que ele descreve seu trabalho:
“Minha atividade nasce do respeito, carinho e admiração que sinto pela madeira. Desde que eu era criança, estou perto dela, trabalhei de maneiras diferentes em jogos de tabuleiro, esculturas, pirografia, etc. Até que eu cheguei aos autômatos e me senti transportado mais uma vez para minha infância. Quando eu trabalho neles, sinto que estou jogando e preenchendo minha alma. Estou me surpreendendo com essa tarefa. Criar uma figura com movimento, eu amo e me relaxa. Resolver seu mecanismo é, todos os dias, um desafio muito atraente. Sempre fui autodidata, não me considero um artista, apenas alguém que quer fazer coisas. Meus pais me ensinaram a fazer o melhor que posso com o pouco e o nada que você tem, não sendo um espectador, mas participante do que eu gosto de fazer. Meu principal objetivo é viver do meu hobby, alimentar a necessidade que eu tenho de criar coisas e desfrutar todos os dias do que faço”.
Mais um pouco e ele cria uma orquestra popular.
Outro pouco e já estamos brincando com o pica-pau e quebrando a cabeça para saber como a avezinha real não se machuca ou desloca o cérebro bicando tantas vezes contra o tronco para perfurar a casca e se alimentar de insetos.
Continuando nesse pouco a pouco, o que era para prender, segurar e já tinha se transformado em solução para movimento de autômato autônomo, vai virando a representação maior da liberdade. Dá voo. E nos suspende no ar. E nos faz voar ao vento, sonhar com pequenas grandezas, secar ao sol, desmanchar, pulverizar, cair por terra, semear, nascer de novo.
Foto e vídeos: divulgação do artista