Pensei em colocar como imagem principal desse post, na home, uma tela em branco, um nada aparente. Mas acho que seria voto vencido. Telas em branco não chamam a atenção, não trazem cliques ou compartilhamentos. Talvez porque elas sejam vistas apenas como um nada. Como se já não fosse muito. Explico para você não achar que essa é mais uma das minhas viagens conceituais. Não que não seja… Já estou aqui rindo da minha tentativa de fazer você ler até o fim…
Para mim que só sei desenhar bonequinho de palito e riscar uma casinha básica (para não me denegrir tanto vou lembrar aqui do tetraedo ou do octaedro aprendidos nas aulas de desenho técnico), uma tela em branco não é um convite, é uma intimidação. Quando vejo a luta do artista japonês Ushio Shinohara com a tela fico com a impressão de que ele sente algo parecido. E aí descarrega porrada… Sim, porque não é preciso não saber pintar para se sentir intimidado pela tela branca. Saber talvez seja até pior. Agrega responsabilidade. E na hora do medo é fugir ou atacar… Ele ataca. Da tela em branco, eu fujo. Ou fico paralisada. Deixo que ela me ameace.
Depois que vi Shinohara passei a imaginar todo quadro pintado no seu estado primário, no limiar da existência e da inexistência, na potência de ser. No ânimo e na vontade do artista. Passei a ver cenas que precedem a marca de tinta. E aí, para piorar ou para melhorar, veio Inútil a Chuva, a peça inspirada em Shinohara. Desde que assisti, dei para ver quadros na vida, na sala, no quarto, na rua, na encenação, no palco. No mar, e no remar. Diz o início do programa da peça: “O barco risca o lago. Quatro figuras remam. Remam sem lembrar muito bem porque remam. Sofrem de uma estranha amnésia, que atinge o coração, mas poupa os músculos. Esses – os músculos – ainda carregam a memória de centenas de remadas”.
Os remadores convivem com a ausência do pai da família. É uma ausência que tenta ser preenchida por um verão, uma névoa, um céu, um baile, uma caça. Só tenta. É um estrago tão grande provocado pela ausência que as razões também desaparecem. Só é possível negar o sumiço. Vive-se numa terra em que nunca ninguém morre. O caixeiro-viajante só deve ter saído para mais uma viagem. Um dia vai voltar. A espera dura o tempo da vida de quem ficou. Até que o próximo saia para uma viagem eterna.
Espera-se a volta fazendo os trabalhos chatos e simples. Tirar o pó cotidiano do janelão, uma baita vidraça que dá as nossas caras para o abismo. Tirar a bagunça da festa de um lugar e por no outro. São cenas que se enquadram nas nossas vidas. Viram telas descritas no programa da peça. E vão nos pregando peças durante o espetáculo. Expectativas emolduradas e presas ao passado.
O futuro se desenha a partir daí. Socos se manifestam num mar de tinta. Remadas e braçadas tentam salvar no naufrágio. O estático que nocauteia e balança fica procurando desculpa para imprimir emoção e dor em forma de cor e forma. O soco se deforma. E seduz o sentimento. Violência vira paz. Briga se transforma em movimento fugaz. Ações bárbaras impregnam-se de valores amenizados pela liberdade que a arte tem de nos virar do avesso e nos fazer seguir para viver mais um verão.
Diz uma das personagens da peça: “durante o veraneio os dias são mais longos. Então demora muito mais para os habitantes do mundo recolherem suas cadeiras e se retirarem das varandas. As pessoas são obrigadas a se encontrar. E, ainda por cima, a encontrar assunto umas com as outras. A bola de fogo no céu flameja tão intensamente que vira um rolo compressor, passando por cima de tudo que se põe no seu caminho”.
Um sol, digo, que, mais e mais, é testemunha das mudanças de vida provocadas – me deixa falar sobre isso – pelas mudanças do clima. A vida real tem cenários de casas destruídas depois de uma inundação, de uma chuva de granizo ou de um vendaval. Famílias desoladas convivem com a morte das plantações e animais por causa de catástrofes climáticas que se desconhecia.
É um soco no estômago, é uma revolta que tem dificuldade para achar o endereço certo dos responsáveis. É um pensamento frustrante e ao mesmo tempo distante. Distante da saída, da solução. Para ela só resta ser sugada pela tela em branco, esse vácuo onde tudo é possível. Esse buraco negro. Esse sumidouro original que seduz, engole e digere para depois expelir, gestar, dar luz aos poderes mágicos da arte, essa coisa que me empurra para remar, faça chuva ou faça sol.
*A peça Inútil a Chuva, da Armazém Cia. de Teatro, está percorrendo o Brasil. Fique atento ao facebook da Companhia para não perder quando chegar na sua cidade.
Fotos: divulgação