A noite, que encontra a solidão da cidade grande, está atrás de pessoas que não sejam mais um número no censo desajuizado que computa, registra, analisa, pesquisa e transforma palavras em estatística; mede emoção em porcentagem.
Margem de erro deveria ser o grosso, constar como a maior parte. Erro é o que identifica o limite humano, nos faz gente. Nos diferencia da máquina. Entre irônicas insinuações e reais alucinações vivemos escondendo nossos erros e supervalorizando nossos acertos. Nem tanto ao céu nebuloso de poluição da grande cidade, nem tanto à terra de puro húmus de esgoto contaminado. Equilíbrio ainda é a melhor saída. Estamos sempre perdendo a chave dessa porta trancada que dá de cara para a rua, para a encruzilhada da banal responsabilidade por si mesmo. Temos medo. Mas deixemos a noite nos visitar.
A noite que quer encontrar a solidão de quem queira se sentir feliz, de quando em quando, voltando para casa. A noite que quer encontrar a solidão de quem esteja só porque precisa ouvir sua respiração profunda e não porque mal ouve o arfar de angústia no peito. Solidão, dissimulada e dolorida, caminha presa nessa solitária. A grande solitária em que a noite na cidade grande pode se transformar.
O inglês Simon Hopkinson fotografa essas noites, não só elas, e as usa como base para sua pintura. Acrílico sobre tela de um autodidata que cresceu no condado de Yorkshire e lá começou a tirar fotos da paisagem. “Usando minhas fotografias como um guia, pretendo criar algo um pouco mais livre do que foto realismo, mas mantendo a atmosfera da cena fotografada. Estou mais preocupado com o estado de humor e com o conteúdo do que com a forma”, explica Simon.
Na adolescência passou para a se interessar por paisagens urbanas. Quando foi estudar na Universidade, em Bristol, resolveu explorar os pontos menos bem vistos da cidade. De 1994 para cá, o interesse pela paisagem urbana britânica só cresceu, incluindo as cenas noturnas.
“Acho cenas noturnas urbanas bonitas em qualquer vila ou cidade em que eu estou. Objetos do cotidiano e edifícios são vibrantes, como o homem que afinal também tem seu brilho, que parece tão natural como a luz da lua. Os passantes são vistos contra um misterioso pano de fundo. É fácil sentir-se perdido em tais ambientes, mas também liberto – em harmonia com a paisagem noturna mais ampla e a rua iluminada pelo fluxo do tráfego e pessoas”, diz o artista, esbanjando poesia.
Tenho essa sensação de liberdade quando ando entre as paisagens noturnas também Simon, mas infelizmente, sinto cada vez mais medo de parar para observá-las. A Inglaterra, que você mostra nas pinturas poderia mesmo ser qualquer uma das nossas cidades, mas claro, com ônibus em intervalos menos regulares. E passando atrasados, lógico. Pontualidade não é o nosso forte. Britânica, então…
Fora os assaltos nos pontos. Cada vez mais, nesses últimos tempos, diga-se de passagem. Passagem cara, por sinal, se for pensar que as empresas fazem de tudo para economizar, tirando um ônibus de linha aqui, ganhando cinco minutinhos ali na planilha, a custa da espera do passageiro, cliente compulsório, dependente a quem só resta se apertar no empurra-empurra e cuidar com os arrastões dentro do ônibus. Muitos de nós queremos, autoridades, andar de ônibus, deixar o carro na garagem, participar menos dessa produção conjunta de poluentes e congestionamentos, mas nos ajudem, sim?
Como é mesmo a máxima que anda sendo repetida por aí?: “país desenvolvido não é aquele em que pobre anda de carro. É aquele em que rico anda de transporte coletivo”. Pois então…
Nessa nossa era de ansiedade e rapidez, precisamos de metrôs, disso que Simon chama de “frieza funcional”. “As passagens de pedestres são lugares inquietantes onde o perigo pode se esconder em cantos que se arredondam e onde ecos, sombras e o som de pés andando rapidamente podem preocupar a mente mais suscetível. Gosto desse mistério estranho, do brilho subterrâneo e a forma como representam os medos modernos”, diz Simon.
Os medos modernos nos fazem fugir da noite. Aquela que encontra a solidão. E a noite que quer encontrar a solidão precisa de liberdade para procurar quem esteja só porque quer viver um momento seu e não porque não vê mais possibilidade de bons momentos.
A noite quer encontrar a solidão que se satisfaz com os pequenos gestos. Que aceita uma mordida na maçã, em vez do sanduíche industrializado da propaganda do outdoor. Essa papagaiada que se espalha aos quatro ventos, arvorando-se o direito de carregar a maioria que adota como meta cega o consumo desenfreado e masoquista de porcaria atrás de porcaria.
Imagens: divulgação Simon Hopkinson