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Sem apoio do governo federal, Cúpula dos Povos indígenas fica isolada da Cúpula da Amazônia, em Belém

Por Cícero Pedrosa Neto*

O local onde a primeira parte da Cúpula dos Povos Indígenas (evento Diálogos Amazônicos) ocorreu ficava em uma via pública, ladeada por arquibancadas de metal e alvenaria, no bairro da Pedreira. É lá que desfilam as tradicionais escolas de samba de Belém. As principais organizações indígenas até tentaram um espaço melhor, mas não receberam resposta dos organizadores do evento, a cargo do governo federal, estadual e municipal.

Foi assim que, no último sábado, 5/8, cerca de 600 indígenas da bacia amazônica se reuniram, longe dos holofotes e da megaestrutura montada para a Cúpula da Amazônia, que começa amanhã, 8/8.

É simbólico quando os principais detentores do conhecimento das florestas ficam de fora dos debates em torno da preservação da Amazônia. “Não fomos convidados, mas viemos para Belém porque a nossa luta é feita de resistência”, protestou Toya Manchineri, coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), uma das organizações indígenas que idealizaram e realizaram o que elas chamaram de Cúpula dos Povos Indígenas

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Toya Manchineri, coordenador geral da Coiab / Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

O encontro paralelo dos povos indígenas, realizado no âmbito da Assembleia dos Povos Pela Terra, reuniu lideranças de todos os estados da Amazônia Legal e de alguns países da Pan-Amazônia. Eles exigem protagonismo nas decisões sobre o futuro dos seus territórios, da Humanidade frente às mudanças climáticas e do modelo de desenvolvimento possível para a região. 

Mas muitas delegações indígenas só puderam chegar à capital paraense graças à mobilização de organizações como a Coiab, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa).

Os mais de 800 indígenas que acompanharam os eventos ao longo dos últimos dias estão, em sua maioria, acampados no Parque dos Igarapés, distante cerca de 14 quilômetros do Hangar, onde governo e organizações participaram dos Diálogos Amazônicos de 4 a 6/8, e lideranças mundiais buscarão encontrar – na Cúpula da Amazônia – uma posição em comum nos debates climáticos da COP 28, que ocorrerá em novembro e dezembro, em Dubai, nos Emirados Árabes.

“Nós queremos ser escutados pelo governo e participar diretamente das decisões que incidem sobre nossos territórios. E a gente também quer incidir nas decisões do governo. Nós também temos voz e já passamos do período tenebroso do Bolsonaro”, acrescentou Manchineri.

“Eu me preocupo muito com o formato que está se dando a essa construção com os povos indígenas separados do evento central, fazendo seu debate apenas entre nós mesmos. Nós já sabemos o que nos afeta e o que precisa se fazer para reverter isso, é o governo que não sabe”, comentou a ativista indígena Nice Tupinambá, presente na plateia da Cúpula dos Povos Indígenas.

Crédito de carbono e bioeconomia

O encontro histórico ocorrido na capital paraense foi aberto pelo líder indígena e cacique Raoni Metuktire, do povo Kayapó, que lembrou da sua longa trajetória de luta pelos direitos dos povos indígenas. “Eu já estou cansado, mas me fortaleço vendo vocês aqui”, disse.

O líder indígena, cacique Raoni Metuktire, foi quem abriu a Cúpula dos Povos Indígenas / Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

Durante quase 10 horas, sob forte calor, em cadeiras plásticas, na Aldeia Cabana, lideranças indígenas abordaram justamente os temas que mais preocupam seus povos e que estão na pauta do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre eles a Ferrogrão, a exploração de petróleo na Foz do rio Amazonas, crédito de carbono e bioeconomia – defendidos como frentes viáveis ao desenvolvimento da região, apesar dos impactos e das controvérsias.

Os temas prometem ser pontos-chave das discussões na Cúpula da Amazônia, evento que sediará a  4ª Reunião de Presidentes dos Países da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). “Estamos aqui para consolidar um documento que diga que tipo de desenvolvimento nós queremos para a Amazônia, de que forma ele tem que ser feito e respeitando os povos indígenas”, comentou Toya sobre o texto que é fruto dos apontamentos feitos pelas lideranças indígenas, que será entregue ao presidente Lula e demais chefes de Estado que estão e estarão em Belém nos próximos dias. 

Demarcação e marco temporal

Não se sabe ainda em que termos será este encontro e como o documento das Cúpula dos Povos Indígenas chegará nas mãos dos presidentes da Pan-Amazônia. Até agora, uma marcha está programada para sair em direção ao Hangar Centro de Convenções em 8 de agosto, primeiro dia da Cúpula da Amazônia.

O documento formalizado pelas organizações indígenas clama pela urgência da demarcação das terras indígenas pelo governo brasileiro e pela não aprovação do marco temporal, como forma de assegurar o bem-viver dos povos originários e a proteção dos biomas. 

Além disso, o documento contém o posicionamento dos povos indígenas da bacia amazônica sobre as políticas governamentais focadas na transição energética e na redução das emissões de carbono, estabelecendo de que maneira os indígenas pensam a bioeconomia e de que forma o crédito de carbono ainda é um enclave do ponto de vista da justiça climática

Outro destaque dado pelos indígenas na assembleia foi a importância da consulta prévia livre e informada na mediação de qualquer empreendimento ou projeto que esteja relacionado aos territórios indígenas, conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Mundial do Trabalho (OIT).

“Eles pensam que nós somos pobres, que vivemos na miséria e que estamos querendo os milhões de dólares do crédito de carbono. Nossa riqueza são os rios e as florestas, o resto é coisa de pariwat [homem branco na língua Munduruku]”, afirma Alessandra Munduruku, que também é uma das principais vozes da atualidade quando o assunto é justiça climática e transição energética justa. 

“Não há futuro sem nós”

Txai Suruí, jovem liderança do povo Paiter Suruí, que ficou conhecida mundialmente após discursar em defesa da Amazônia e dos povos indígenas na COP 26, em Glasgow, na Escócia, acompanhou a plenária indígena e não escondeu seu desapontamento.

Txai Suruí, jovem liderança indígena do povo Paiter Suruí, conhecida mundialmente por lutar em defesa da Amazônia (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real).

“O que eu estou vendo nesses eventos do governo é justamente o contrário daquilo que estamos construindo em termos de diálogo, porque os povos indígenas de fato não estão dentro das discussões. A prova disso é o isolamento deste encontro que está acontecendo”, declarou Txai em entrevista à Amazônia Real, se referindo à Cúpula dos Povos Indígenas.

Recentemente, ela, a mãe, Neidinha Suruí, o artivista Mundano e mais cinco indígenas do povo Uru-Eu-Wau-Wau foram vítimas de uma emboscada em uma estrada que dá acesso ao posto de vigilância da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), em Rondônia.

Mirando na COP 30, maior evento mundial pelo clima que será realizada em Belém, e avaliando o governo do Pará como um dos maiores da região amazônica, Txai destaca o mau exemplo dado pelo governador Helder Barbalho (MDB).  A jovem liderança disse não entender como o mesmo governador “quer abrir as portas do estado para uma série de empreendimentos destrutivos, como a Ferrogrão e outros, e, ao mesmo tempo, falar em proteger as florestas”. 

“Não há futuro sem nós povos indígenas, mas nós já sabemos disso. E sabemos que se os governantes continuarem tomando decisões sem nos escutar de verdade, não vai ter mudança de verdade”, afirma Txai, que coordena a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, com sede em Porto Velho, Rondônia.

“O que é essa bioeconomia, parentes?”

Bioeconomia tem sido apontada pelo governo Lula como uma solução para a região amazônica para a geração de renda e substituição de práticas destrutivas que impactam os biomas. No entanto, questionamento de indígenas, quilombolas, povos tradicionais e pesquisadores repousa no fato de que os danos são provenientes do agronegócio, do garimpo, da monocultura e da extração ilegal de madeira, atividades diretamente associada às queimadas, ao desmatamento, à contaminação dos rios e, consequentemente, às mudanças climáticas.

Mariazinha Baré, líder indígena do Amazonas (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real).

Longe de negarem a importância da bioeconomia como ferramenta de transformação e uma guinada a um futuro mais integrado e em conexão com a natureza, o que os povos das florestas querem saber é de que forma o governo tem pensado a bioeconomia e como eles participarão, efetivamente, das discussões e tomadas de decisão

“O que é essa tal bioeconomia, parentes?”, questionou Maria Cordeiro Baré, mais conhecida como Mariazinha Baré, liderança indígena do Amazonas na Aldeia Cabana.

“O governo do Amazonas está construindo um plano de bioeconomia sem a participação dos povos indígenas, sem a participação dos quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares”, denuncia ela sobre a falta de escuta dos povos no Plano de Bioeconomia do Amazonas, liderado pelo governador Wilson Lima (União Brasil). 

“Esse é o grande problema dos governos e é o mesmo que estamos vendo aqui na construção da Cúpula da Amazônia, para a qual nós não fomos chamados. Mas nós estamos aqui porque sabemos da nossa importância para a Amazônia e para o mundo”, afirma a líder.

Para Mariazinha Baré, um dos pontos mais importantes do documento da Cúpula dos Povos Indígenas que será entregue aos presidentes no dia 8 é o que fala da relação bioeconomia e povos indígenas

“Qual a bioeconomia que a gente quer e o que é bioeconomia na nossa visão, nós povos indígenas? E será que os governos estão mesmo dispostos a pensar em uma economia de baixo impacto? Será que eles estão dispostos mesmo a passar por esse processo de transição econômica? Até que ponto eles estão mesmo dispostos a mudar esse cenário de uma economia que vai arrasando e matando os povos e as formas de vida na Amazônia”, resume.

A líder, fazendo coro com os demais membros da mesa que discutia o futuro dos povos indígenas na Amazônia e sob palavras de ordem que pediam o fim da tese do marco temporal, ressaltou a importância dos povos continuarem lutando pela demarcação dos territórios. “Está provado que nossos territórios são locais onde existe vida e onde a gente consegue manter a vida sem desmatamento e queimadas”.

Vetores de destruição

Alessandra Munduruku, cuja voz se opõe ao garimpo na região do Tapajós, se diz pessimista com relação às ações e aos discursos do governo sobre o combate às mudanças climáticas e à proteção da Amazônia.

“A gente sabe que o mundo está de olho na Amazônia, todo o caos que está acontecendo com as mudanças climáticas tem envolvido a Amazônia. Mas se o governo negociar com mineradoras, hidrelétricas nos nossos rios, compensação de carbono nos nossos territórios e exploração de petróleo, para nós não vale nada o que eles estão dizendo”.

Alessandra Korap, líder indígena do povo Munduruku, e uma das principais vozes da Amazônia contra o garimpo e as hidrelétricas no Tapajós (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real).

A liderança Munduruku questiona, ainda, a falta de posicionamento do governo federal em relação ao marco temporal. Essa tese, que está sob análise tanto no Senado Federal quanto no Supremo Tribunal Federal (STF), condiciona o direito territorial dos povos indígenas apenas sobre os territórios ocupados antes de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Se aprovada, ela colocará em risco e vulnerabilidade centenas de famílias indígenas em todo o País.

Os indígenas cobram uma posição do governo federal a respeito dos grandes vetores que promovem as destruições nas Terras Indígenas, apontando para as indústrias de mineração e de produção de agrotóxicos, além dos impactos mortais causados pela contaminação por mercúrio causada pelo garimpo.

“A gente quer saber o que o governo vai fazer com os projetos de lei que estão afetando nossa terra”, cobra Alessandra. Ela também questiona os “países desenvolvidos porque eles financiam a destruição da nossa terra e ao mesmo tempo falam em mudança climática, em preservar a Amazônia para as futuras gerações”.

O ceticismo de Alessandra foi um sentimento compartilhado nos mais de 50 depoimentos ouvidos na Cúpula dos Povos Indígenas, além das denúncias e cobranças. Uma delas era a ausência notável das lideranças indígenas agora com assento no governo federal como Joenia Wapichana, presidente da Funai, e a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara.

Joenia já estava em Belém durante o encontro das lideranças, mas participava de plenárias indígenas no evento oficial do governo, nos Diálogos Amazônicos. A ministra Sônia, por sua vez, só chegou em Belém no domingo, 6, e também participou de plenárias desse evento.
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* Este texto foi originalmente publicado no site da Amazônia Real, em 7/7/2023

Foto (destaque): Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real

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