O PL 2903 – que propõe a tese ruralista conhecida como marco temporal para demarcação de terras indígenas – foi aprovado hoje, 27/9, em tempo recorde.
(PL 2903 foi a denominação que o projeto PL 490 recebeu no Senado, após sua aprovacão na Câmara dos Deputados em 31 de maio)
Senadores da bancada ruralista dedicaram o dia todo à ele e fizeram tudo às pressas. Primeiro, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), em seguida pediram urgência para votação no Plenário ao presidente, Rodrigo Pacheco, que os atendeu prontamente, e, por fim, ao aprovarem o texto por 43 votos a 21, em definitivo. Agora, o PL segue para sanção ou veto presidencial.
Parecia uma cena de teatro, muito bem orquestrada, certamente impulsionada pela vitória quase unânime no Supremo Tribunal Federal (STF) na semana passada, por 9 votos a 2. E aí vem a pergunta: como pode a Corte decidir sobre direitos fundamentais dos povos indígenas, com base na Constituição Federal, determinar que a proposta do marco temporal é inconstitucional e ser ignorada por parlamentares com interesses escusos?
Para o relator, senador Marcos Rogério (PL/RO), o fato de o STF defender ideia diferente da aprovada no Senado e na Câmara significa “suprimir” e “aniquilar” as competências do Congresso Nacional, mas a decisão do STF não vincula o Legislativo.
“Esta é uma decisão política. Hoje, estamos reafirmando o papel desta Casa. Com esse projeto, o parlamento tem a oportunidade de dar uma resposta para esses milhões de brasileiros que estão no campo trabalhando e produzindo”.
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, também se manifestou a respeito, dizendo que não houve, por parte da Presidência da Casa, nenhum “açodamento” para apressar a votação. E, destacando seu respeito a todos os setores, negou que a aprovação do projeto seja um enfrentamento ao STF e pediu foco na conciliação e no respeito entre os Poderes.
“Não há sentimento revanchista com a Suprema Corte. Sempre defendi a autonomia do Judiciário e o valor do STF. Mas não podemos nos omitir do nosso dever: legislar”.
Apelo ignorado
Vale lembrar que, em 11 de setembro, as ministras dos povos indígenas, Sonia Guajajara, e do meio ambiente, Marina Silva, estiveram com Rodrigo Pacheco, para alertá-lo sobre os perigos da tese ruralista para os povos originários e o meio ambiente, e solicitaram que o texto passasse por outras comissões, como a dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente.
Também reivindicaram para que os ‘jabutis’ incluídos no texto aprovado na Câmara fossem retirados, visto que poderiam impactar, ainda mais, a vida dos indígenas.
De acordo com o texto, entre outros absurdos, o PL 2903 permite plantar transgênicos em terras exploradas pelos povos indígenas, como também, o contato com povos isolados, intermediado pela Funai, para ações como auxílio médico ou ação de utilidade pública.
Destaco, aqui, que os isolados não querem contato com outros indígenas ou não-indígenas e isso deve ser respeitado! Invadir seus espaços – em geral localizados nas terras de outras etnias – é desrespeitá-los e torná-los ainda vulneráveis a doenças e conflitos.
Mas, pelo visto, os apelos das ministras e de suas equipes foram ignorados por Pacheco. E isso, de certa forma, foi explicado – sem intenção – por Pedro Lupion, quando declarou que o presidente do Senado “tem cumprido o compromisso com a bancada ruralista e deixado o texto tramitar nas comissões”, sem interferência.
O compromisso dele é com a bancada ruralista. As comissões indicadas pelos defensores da tese ruralista e aceitas por ele para analisar o texto, mais uma vez, demonstram isso: Agricultura e Constituição, Justiça e Cidadania, dominadas por essa bancada.
Decisão do STF deve ser acatada
De acordo com especialistas em Direito Constitucional, mesmo sem a publicação da decisão do STF e antes mesmo de passar pelo presidente, na pra1tica, a decisão da Corte deve ser acatada, visto que a inconstitucionalidade da tese é de conhecimento da Justiça brasileira.
Se Lula vetar trechos do texto aprovado pelo Senado, o que vale é a versão sancionada por ele, até que os vetos sejam derrubados pelos parlamentares.
Logo após a votação na CCJ, o senador Pedro Lupion (PP/PR), presidente da Frente Parlamentar de Agricultura, mais conhecida como bancada ruralista, declarou:
“O que o STF fez foi uma interpretação constitucional da tese. Tenho entendimento claro que o artigo 231 da Constituição fala sobre marco temporal, mas eles [os ministros] disseram que não. Se eles quiserem contestar essa lei, alguém vai ter que pedir, não pode ser iniciativa deles, alguém vai ter que entrar no STF imagino que alguém da oposição o fará, e fazer com que haja esse julgamento”.
Exatamente! Ainda existe a possibilidade de partidos ou entidades recorrerem ao STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) para tentar invalidar a nova lei. Isto feito, a Suprema Corte poderia conceder – mesmo que em caráter liminar – uma ordem para suspender a vigência da lei aprovada a “toque de caixa” por deputados e senadores.
Mas, no final de seu pronunciamento, Lupion ainda destacou que, “até isso acontecer, pode acontecer muita coisa”. Talvez ele estivesse se referindo à PEC (Proposta de Emenda à Constituição) redigida para validar o marco temporal, ou seja, fixar a tese do marco temporal na Constituição (como contamos aqui), e protocolada em 25 de setembro.
Além disso, a “nobre” bancada tenta avançar com outro projeto de lei para prever a indenização a quem ocupa terras consideradas indígenas, que pode ser inspirada na proposta do ministro Alexandre de Moraes, durante seu voto contra o marco temporal.
Vetos de Lula
Para parlamentares que apoiam o governo Lula, o presidente certamente vetará alguns pontos do texto, como os que já citei: plantio de transgênicos e contato com povos isolados, por exemplo.
Mas, para o relator do PL, que também acredita na interferência do presidente, isso não mudaria o núcleo central da proposta, que – pra não variar – opõe ambientalistas e ruralistas.
Para os primeiros, a tese não leva em conta os massacres e ataques empreendidos contra os indígenas antes dessa data: muitos fugiram ou foram expulsos de suas terras e não estavam nelas em 5 de outubro de 1988. Portanto, trata-se de um retrocesso. Para os demais, o PL 2903 garante “segurança jurídica ao Brasil do campo”.
Em defesa dos indígenas
Na visão do senador Jaques Wagner (PT/BA), líder do governo no Senado, “é inócuo votar um projeto que tem um sentido contrário ao que o STF decidiu como constitucional”.
Para Randolfe Rodrigues (sem partido/AP) destacou que o PL 2903 traz questões perigosas que vão além do marco temporal, como a exploração e o plantio de transgênicos nas terras indígenas. “Isso é inconstitucionalidade flagrante. Retroceder a demarcação é mais que inconstitucional. Por óbvio, será acionada a Suprema Corte”.
Lembrando que, na semana passada o STF já decidiu a questão, ao considerar o marco temporal como inconstitucional, a senadora Eliziane Gama (PSD/MA) afirmou que o projeto tenta modificar o texto da Constituição de 1988. Na sua visão, “é desumano usar os povos indígenas como disputa entre o Legislativo e o Supremo” e ressaltou que a aprovação do PL marca “um dia triste” para o meio ambiente. “Este projeto está fadado ao veto presidencial”, finalizou.
Alessandro Vieira, por sua vez, destacou que a tese do marco temporal já foi reconhecida como inconstitucional pelo Supremo e que a votação do projeto não passava de “um teatro, muito bonito para as redes sociais”, que não geraria “consequências jurídicas, pois um projeto de lei não poderia fazer mudanças constitucionais”. E questionou: “Que ganho há em colocar esta Casa em mais um constrangimento?”.
Para a senadora Zenaide Maia (PSD/RN), os povos indígenas estão sendo “esmagados”, por serem vulneráveis e que o tema precisaria ser debatido nas comissões de Meio Ambiente (CMA) e Direitos Humanos, como reivindicado por Sonia Guajajara e Marina Silva. “É o lucro e o interesse econômico acima da vida. Quem está ganhando hoje é quem financia os garimpos e os grandes latifúndios. Isso é uma página infeliz da nossa história“.
A favor do agronegócio
Para a senadora Tereza Cristina (PP/MS) – ex-ministra da agricultura e ex-musa do veneno – o PL 2903 é uma forma de dar uma satisfação à sociedade, que ainda pode “ajudar na pacificação do país”.
Claro que o senador Zequinha Marinho (PL/PA) – envolvido com o deputado federal Ricardo Salles, quando era ministro do meio ambiente, no contrabando de madeira – também defendeu a aprovação do PL, dizendo que “o texto está há 17 anos sendo discutido no Congresso”. Segundo ele, “o país seguirá cuidando de seus povos originários […], mas esta Casa precisa fazer sua obrigação: legislar, para que outros não façam seu papel. Este projeto é importante para o Brasil, por trazer segurança jurídica”.
Já o senador Omar Aziz (PSD/AM) disse não concordar “com uma política ambiental que nega a existência de habitantes na floresta amazônica”, citando, como exemplo, a dificuldade de asfaltar uma rodovia em seu estado. Em sua visão, a questão do STF “somatiza com as decisões de políticas ambientais”. E foi além: acusou a ministra Marina Silva de praticar o “estreitismo”.
Para a senadora Margareth Buzetti (PSD/MT), “o projeto traz paz no campo, paz na cidade. Se continuar do jeito que está, podemos ter até uma guerra civil”.
Jayme Campos (União/MT) defendeu que a aprovação do marco temporal “faz o Senado reassumir suas prerrogativas” e que aprovar o PL 2903 “é uma forma de respeitar os produtores rurais e os indígenas, levando segurança e paz ao campo”, opinião compartilhada por Eduardo Girão (Novo/CE), que acrescentou: “É uma forma de trazer segurança jurídica e aproximar o Senado da sociedade”.
O senador Mecias de Jesus (Republicanos/RR) disse que Senado “está dando uma resposta à população brasileira” e que “não vê inconstitucionalidade no projeto de lei”.
Por último, a senadora Soraya Thronicke (Podemos/MS) – que esteve à frente da Comissão de Agricultura do Senado na primeira votação e aprovação do PL 2903 – declarou que “a política atual do governo deixa indígenas e produtores insatisfeitos. A prova é que não havia indígenas nas galerias do plenário do Senado para pedir a rejeição do projeto”.
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Fontes: Agência Brasil, Agência Senado, O Globo
Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado