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“Nós, mulheres cientistas podemos fazer muito mais pela ciência”, diz matemática brasileira ao receber prêmio internacional na Itália

"Nós, mulheres cientistas podemos fazer muito mais pela ciência", diz matemática brasileira ao receber prêmio internacional na Itália

Na semana do Dia Internacional da Mulher, a matemática brasileira Jaqueline Godoy Mesquita tem muito a celebrar. Ela é a única pesquisadora da América do Sul, Central e do Caribe a conquistar o “Science, She says! Award”, reconhecimento oferecido pelo Ministério das Relações Exteriores e Cooperação Internacional da Itália (Maeci) a jovens cientistas estrangeiras de destaque.

“Estou aqui hoje para receber este prêmio não apenas como Jaqueline Mesquita, mas também em nome de todas as mulheres cientistas da América do Sul, Central e Caribe, especialmente as do Brasil, meu país natal. Se estou ganhando este prêmio hoje é porque muitas mulheres no passado lutaram e morreram para permitir que eu e outras mulheres ao redor do mundo pudéssemos estudar e fazer progressos significativos na ciência. Portanto, é meu dever dizer ao mundo inteiro hoje que nós, mulheres cientistas de todas as áreas, podemos fazer muito mais pela ciência, podemos ajudar a resolver os desafios globais, promovendo relevantes transformações no mundo.”

O prêmio recebido por Mesquita na segunda-feira (06/03), em Roma (Itália), não é o primeiro a reconhecer a relevância de seu trabalho em prol do avanço da ciência brasileira. Em 10 de outubro de 2019, ela subiu ao palco da Casa Firjan, espaço pertencente à Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), para receber o prêmio “Para Mulheres na Ciência” na categoria “Matemática”. Oferecida pela L’Oréal em parceria com a Unesco Brasil e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), a premiação se tornou um importante marco na carreira da jovem pesquisadora, que na época tinha apenas 33 anos.

“Você começa a ter muita visibilidade após o prêmio. Acho até que esse é um dos grandes impactos positivos, porque a gente não conhece muito sobre as pesquisas que as mulheres estão desenvolvendo no país, principalmente na área da matemática”, contou Mesquita à Assessoria de Comunicação do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP).

Com a visibilidade alcançada a partir do reconhecimento, os holofotes também foram direcionados para a linha de pesquisa de Mesquita, um campo ainda bastante inexplorado dentro da ciência brasileira.

“Várias pessoas começaram a se interessar mais pela área das equações diferenciais funcionais com retardamento depois do prêmio. Então, eu fui chamada para dar várias palestras e falar sobre essas equações. Surgiram, inclusive, conexões com outras linhas de pesquisa. Diversos projetos nasceram a partir disso porque as pessoas passaram a entender o que eu fazia, e as possibilidades de parcerias se multiplicaram”, revelou.

A pesquisadora explica que as equações diferenciais funcionais com retardamento vêm ganhando destaque pela sua grande aplicabilidade, especialmente em estudos que buscam compreender a evolução de doenças causadas por vírus, em que decorre certo tempo entre a pessoa ser infectada e aparecerem os sintomas. Esse lapso de tempo, ou período de retardo, que transcorre entre a causa e o efeito de algo é o que caracteriza os fenômenos da natureza descritos por meio dessas equações. A mesma situação pode ser observada quando se toma um remédio, por exemplo, pois demora certo tempo até o efeito aparecer.

A paixão pela matemática começou a se estabelecer no final do ensino médio, quando frequentou um colégio particular em Brasília, cidade na qual morou desde os 5 anos de idade, depois de sair da terra natal Boa Vista (Roraima). O dono da escola era matemático e a forma como ensinavam a matéria era muito estimulante, contando a história da área. A garota decidiu, então, que optaria por seguir carreira em matemática ou em física.

Em 2003, ela foi aprovada no vestibular da Universidade de Brasília (UnB) para cursar matemática. No fim da licenciatura, alguns amigos resolveram se inscrever em cursos de verão para aprimorar a formação.

Ao escolher o Programa de Verão em Matemática do ICMC-USP, em São Carlos, a estudante deparou-se com dois cursos disponíveis: álgebra linear e análise complexa. Optou pelo primeiro, pois não tinha cursado nenhuma disciplina básica em análise complexa.

“Até me lembro de quem era o coordenador do Programa de Verão, o professor Sérgio Monari. Anos depois, ele me encontrou e falou assim: ‘Jaqueline, eu lembro do seu processo, quando chegou para mim o pedido de uma menina de Brasília para fazer álgebra linear. Eu olhei e falei: Não! Essa menina vai para análise complexa’. Ele até brinca com isso, porque realmente achava que eu tinha condições de fazer o curso”.

A confiança de Monari faltava à estudante. Ao ficar sabendo que fora escolhida para o desafiador curso de análise complexa, ela levou outro choque. Chegando ao ICMC, descobriu que a primeira parte da disciplina seria ministrada pelo professor Alexandre Nolasco de Carvalho, enquanto a segunda, pelo professor Hildebrando Munhoz Rodrigues.

Já na primeira aula, duvidando da própria capacidade de ser aprovada na empreitada, mostrou o histórico escolar ao professor Nolasco, explicando que não havia cursado algumas disciplinas básicas. Ele disse que, realmente, se tratava de um curso avançado e que seria difícil acompanhar sem ter uma base antes.

Decidida a voltar para Brasília, a estudante resolveu fazer uma fotocópia do material que o professor tinha disponibilizado aos alunos, assim, poderia estudar depois. Enquanto aguardava o material ser preparado, ela olhou um cartaz pendurado na parede: era a imagem de um pato prestes a devorar um sapo, enquanto o anfíbio insistia em enforcar o pato, como se houvesse esperança de que poderia sobreviver. Abaixo da imagem, uma frase resumia a cena: “Não desista nunca”. Com as fotocópias do material em mãos, a imagem e a frase na cabeça, Mesquita saiu do ICMC naquele dia decidida a voltar. Ela daria o seu melhor e não desistiria.

“Eu estudei muito. Acho que foi um dos meses que eu mais estudei na minha vida, sabe? Eu estudava o tempo inteiro. Lembro que quando acabou o curso, eu praticamente não tinha conhecido a cidade de São Carlos. Aí eu passei, fui aprovada e fiquei muito impressionada porque tinha conseguido uma das melhores notas da turma.”

Mesquita voltou a Brasília para terminar a Licenciatura, ainda faltavam seis meses. Depois, pretendia prosseguir nos estudos para também obter o Bacharelado. Passaram-se alguns meses até que recebeu um e-mail com outra surpresa.

“A professora Márcia Federson, que era coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Matemática do ICMC, escreveu falando assim: ‘Olha, Jaqueline, você foi selecionada para fazer o mestrado, pode começar no meio do ano’. Ela falou que eu tinha de dar uma resposta logo, porque havia um prazo para pedir bolsa à FAPESP. Fiquei superdesesperada, nem pensava em fazer um mestrado.”

Ao aceitar o chamado do ICMC em 2007, Mesquita teve a chance de escolher como orientadora a professora Federson, que também se tornou sua mentora, guiando-a pelos desafios do mestrado, finalizado em 2009 e do doutorado, concluído em 2012. As parcerias científicas da orientadora com pesquisadores do leste europeu possibilitaram a Mesquita vivenciar um período de seu doutorado na Academia de Ciências da República Tcheca, em Praga. Também em 2012 foi contemplada com o prêmio internacional Bernd-Aulbach prize for students em Novacella, Itália, concedido pela International Society of Difference Equations.

A jornada internacional prosseguiu durante o pós-doutorado, em 2013, quando esteve na Universidade de Santiago de Chile. No mesmo ano, de volta ao ICMC, concluiu o segundo pós-doutorado e, a seguir, foi contratada como professora pelo Departamento de Computação e Matemática da USP, em Ribeirão Preto, onde permaneceu de 2013 a 2015. Em 2019, conquistou outra bolsa, a Alexander von Humboldt/Capes para pesquisador experiente, e passou a desenvolver pesquisas na Justus-Liebig Universität, em Giessen, na Alemanha. Atualmente, é professora do Departamento de Matemática da UnB.

Entre as muitas mentoras que a incentivaram e inspiraram ao longo da carreira, a professora Maria Aparecida Soares Ruas, do ICMC, ocupa um lugar de destaque:

“Todos os anos, a professora Cidinha me mandava a propaganda do prêmio da L’Oréal para eu me inscrever! E foi ela que me indicou para a Academia Brasileira de Ciências. É uma pessoa que me apoia muito, pela qual eu tenho uma grande consideração”.

"Nós, mulheres cientistas podemos fazer muito mais pela ciência", diz matemática brasileira ao receber prêmio internacional na Itália

Jacqueline durante a cerimônia do prêmio em Roma

Permite-se a entrada de mulheres (com e sem óculos)

Entre os muitos estereótipos sobre o mundo da pesquisa em matemática, ao menos um deles pode ser sintetizado por uma frase já ouvida por Mesquita: “Você não parece matemática, você nem usa óculos”. Símbolo de uma visão distorcida e limitada sobre a área, a frase estampa na cara, literalmente, o quanto ainda estamos distantes de desmistificar as ciências exatas.

Cerceada por estereótipos desse tipo e marcada pela desigualdade de gênero, a matemática tem seu desenvolvimento prejudicado. Jaqueline defende que todo ambiente científico precisa ser criativo e que, para isso, é necessário ter diversidade, uma condição essencial para que o conhecimento avance.

“A diversidade nos grupos de pesquisa é fundamental, pois possibilita que existam vários olhares e distintas perspectivas voltados a resolver um problema, o que ajuda a construir um ambiente de trabalho muito mais produtivo.”

Mas não foi um cenário acolhedor que Mesquita encontrou ao ingressar na graduação: dos 36 alunos da turma, apenas sete eram mulheres. Além disso, ela teve pouquíssimas professoras e, conforme foi subindo na carreira acadêmica, notou que o número de mulheres se reduzia cada vez mais.

“As meninas acabam se sentindo desestimuladas, achando que aquilo não é para elas. Eu já tive muito essa sensação em várias etapas da minha carreira, a ponto até de quase pensar em desistir em alguns momentos. Porque eu acho que é justamente isso: o fato de você ver poucas mulheres e notar que elas vão sumindo ao longo do caminho dá aquela sensação de não pertencimento. Então, é muito importante a representatividade hoje, mais do que nunca. Quando eu vejo, por exemplo, um evento de matemática em que não há mulheres plenaristas, acho extremamente danoso porque os nossos alunos estão assistindo a isso. Para mim, fez muita diferença ter uma professora ao meu lado, uma orientadora, ter amigas durante o curso. Enfim, ter outras mulheres comigo. Acho que isso é bem importante e faz muita diferença: ter essa rede.”

Embaixadora do Committee for Women in Mathematics da União Internacional de Matemática (IMU), Mesquita integrou a Comissão de Gênero e Diversidade da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) e da Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Computacional (SBMAC). É, ainda, membro afiliado da Academia Mundial de Ciências (2018-2022) e faz parte do Comitê Executivo dos Jovens da Academia Mundial de Ciências (2022-2025). No final de 2021, assumiu a vice-presidência da SBM, cargo que ocupa até hoje.

*Texto publicado originalmente em 09/03/23 no site da Agência Fapesp de Notícias

Fotos: divulgação Assessoria de Comunicação do ICMC/USP

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