
Criada no extremo sul de São Paulo, onde a zona rural resiste nas bordas da metrópole, a jornalista Mariana Belmont, de 32 anos, é ativista desde a adolescência, quando percebeu a importância do envolvimento dos moradores para conservar a natureza e garantir a qualidade de vida na periferia da cidade e passou a participar de movimentos como o de criação da Área de Proteção Ambiental Bororé-Colônia.
Atuando na área da comunicação ambiental em órgãos públicos, organizações e coletivos, nunca perdeu o vínculo com sua região e a causa dos agricultores que fornecem comida e serviços ambientais para o restante da população.
Mariana faz parte de uma geração de jovens beneficiados por políticas públicas como cotas e o Programa Universidade para Todos (ProUni), que chegou à universidade e hoje muda a narrativa e dá voz aos habitantes das ‘quebradas’. Foi uma das criadoras da Rede de Jornalistas das Periferias, que reúne vários os coletivos dedicados a fazer a comunicação chegar na ponta e provocar a grande mídia para conhecer os territórios da periferia. Também participou da idealização da Bancada Ativista, cujo objetivo é facilitar o acesso de ativistas ao poder legislativo.
Em entrevista ao Mulheres Ativistas, do Conexão Planeta, disse que luta para que o acesso à informação seja prioridade para quem mora na periferia e para que os moradores das outras regiões deixem de ter visões estereotipadas sobre ela. O grande desafio, na visão da jornalista, é conciliar a conservação e a vida das pessoas que vivem nos ‘muros da cidade’.
Como é ser uma paulistana da zona rural?
Nasci e me criei no extremo sul de São Paulo, em Colônia Paulista, bairro de Parelheiros, que é como uma cidade do interior. Fui criada pelos meus padrinhos e meu avô, porque minha mãe trabalhava. O sítio do meu avô era em frente ao do meu padrinho e, para mim, era comum conviver com a natureza, fazia parte do lugar onde morávamos.
Tínhamos criação de ganso, pato, galinha e uma horta totalmente orgânica para consumo da família. Comíamos o que vinha do quintal. Diziam que morávamos no meio do mato, perto dos índios. E havia o ‘seu’ Lima, pai dos meus amigos Anníbal e Lucas, que tinha uma Paraty e carregava as crianças para desbravar a região. Passava em casa e eu saía com a mochila para dois a três dias de acampamento, quando explorávamos trilhas, cachoeiras e outros sítios.
Foi essa ligação com a natureza que a levou à militância ambiental?
Não apenas. Tivemos bons professores na escola que nos ajudaram a entender o bairro em que vivíamos. Criamos um projeto de valorização da cultura de Colônia Paulista – formado por nordestinos, índios e alemães – e de participação nas instâncias de representação. Eu era a que mais gostava de fazer parte de conselhos, como os da subprefeitura de Parelheiros, da Área de Proteção Ambiental (APA) Capivari-Monos e do Núcleo Curucutu do Parque Estadual da Serra do Mar.
Quando terminei o colegial e entrei na faculdade de jornalismo, continuei a participar. Uma das coisas que mais me impulsionaram na época foi a luta pela criação da APA Municipal Bororé-Colônia, que pega todo o meu bairro e faz um corredor com a de Capivari-Monos. Muito jovem, participei de todo o processo em campo, oficinas, discussão e criação da unidade de conservação. Essas foram as duas primeiras APAs da cidade de São Paulo.
Outro processo que acompanhei desde que estava entrando na faculdade foi a criação de quatro parques como compensação ambiental pelo Rodoanel, que finalmente ficaram prontos no início de 2020. Desde então, minha vida pessoal se engancha com a profissional.
Em 2008, comecei como estagiária na assessoria de imprensa da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. Conhecia vários gestores da secretaria e comecei a entender os processos de comunicação. Ficava perto dos técnicos e cresci com eles. Esses gestores e técnicos representavam o movimento ambientalista na cidade de São Paulo. Trabalhei cinco anos na Secretaria e também era conselheira da APA Bororé-Colônia.
Em 2014, me mudei para Angra dos Reis para trabalhar no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), na comunicação do Mosaico da Bocaina. Fui convidada por dois gestores que vieram de São Paulo. Fiquei dois anos lá e foi uma das experiências mais legais que tive, por atuar com comunidades tradicionais e conectada à pauta ambiental nacional. Passei a ter esse olhar ativista que junta a proteção da natureza com a defesa de quilombolas, indígenas, caiçaras. Foi importante ver os conflitos de perto e conhecer mais ainda a Mata Atlântica, meu bioma favorito.
Você tem forte ligação com os agricultores do município de São Paulo, categoria pouco lembrada no contexto paulistano…
Mesmo durante o tempo em que estive fora, me mantive conectada com os agricultores de Parelheiros. Acompanhei de perto os debates do novo Plano Diretor para que o extremo sul da cidade voltasse a ser considerado zona rural, condição que havia sido tirada. Com a discussão, os agricultores ganharam relevância. Um dos maiores momentos foi quando houve um assalto ao sítio do ‘seu’ Osvaldo Caqui, um velhinho do qual levaram tudo. De Angra, conseguimos fazer uma mobilização para comprar tudo para ele. Isso sensibilizou os agricultores a lutar para que a região voltasse a ser zona rural, o que traz mais segurança ao campo.
Perto do golpe que tirou a presidente Dilma, em 2016, pedi demissão do ICMBio e voltei a trabalhar na Prefeitura de São Paulo, mas na Secretaria Municipal de Habitação, onde passei um ano na comunicação durante as discussões do Plano Municipal de Habitação, no mesmo ano em que o Plano Diretor foi aprovado. O debate sobre meio ambiente e habitação foi intenso, pois é uma pauta socioambiental de fato. Para mim, esse tema ainda é um conflito.
Depois disso, fiquei ainda mais próxima dos agricultores. Em 2016, a cidade ganhou um prêmio da Bloomberg Philanthropies – fundação voltada a assegurar melhor qualidade de vida para o maior número de pessoas -, para fortalecimento da agricultura. Fui convidada, junto com a também jornalista Mônica Ribeiro (que assina o blog Economia em Sol Maior, aqui no Conexão Planeta), para fazer um diagnóstico do perfil e um plano de comunicação para os agricultores de Parelheiros. Foram alguns meses em campo, quando pudemos ver como a urbanização estava chegando desordenadamente, pressionada pelo crescimento da cidade, mesmo em um lugar que produz água e alimento para toda a população.
Como os jovens da periferia estão atuando para mudar situações como essa?
Participei, entre 2011 e 2018, de um coletivo, o Imargem, que discute a cidade a partir dos muros onde ela nasce, como permanecer nela e a quem ela pertence. A cidade tem muitos coletivos periféricos e foi a partir daí que começamos a encontrar outros coletivos e criamos, em 2016, a Rede de Jornalistas das Periferias, que é multiolhares, faz jornalismo das quebradas, com notícias e produção de conteúdo. São 13 coletivos na rede, mas a cidade tem mais de 100.
Em 2017, fizemos a Virada Comunicação, com a ideia de trazer comunicação periférica a partir da periferia. Uma das principais discussões é como provocar a grande mídia a conhecer os diversos territórios e também formar jovens dos territórios para serem comunicadores. Somos a geração das cotas e do ProUni, com uma onda de pessoas que se formaram. É um movimento político, voltado para fazer a comunicação chegar na ponta. Esses coletivos produzem dados e sua própria narrativa. E ocupam espaços. Hoje sou colunista do UOL, muitos outros também têm tido destaque. Como diz o Tony Marlon, “nada sobre nós sem nós”.
Em que momento você começa a se envolver com movimentos voltados para a participação política?
Com um grupo de amigos, iniciamos em 2016 um movimento de renovação legislativa e criamos a Bancada Ativista, para eleger ativistas ao Poder Legislativo em São Paulo. Naquele ano, apoiamos oito candidaturas para a Câmara de Vereadores, de vários partidos, e Sâmia Bomfim foi eleita. Passei a trabalhar no Instituto Update, também voltado a fazer ativistas entrarem na política, e ajudei a construir a campanha de Douglas Belchior para deputado federal em 2018, representando o Movimento Negro.
Ao mesmo tempo, coordenei um projeto na Purpose, ONG internacional ligada às campanhas de clima e cidades, para capacitar coletivos para que escrevam sobre mudanças climáticas a partir de seus territórios. Fizemos um mapeamento nacional desses coletivos e escolhemos dez, de vários estados do país, para participar de uma imersão no Centro Paulus, em Parelheiros.
Convidamos pessoas para discutir com eles pautas como cidade e periferia, mudanças climáticas e a transversalidade entre eles, como esgoto e desenvolvimento. Conseguimos bolsas para cada coletivo produzir conteúdos sobre o tema, que resultaram em um material original, como o ligado à comunidade negra, mostrando como a mudança climática afeta a produção de ervas para terreiros. Houve, também, trocas entre eles para conhecer outros territórios e criou-se uma conexão nacional de coletivos.
Há um ano, apoio a Uneafro para construir advocacy no Congresso Nacional, a partir do Douglas, o que gerou a possibilidade de me conectar a outros movimentos negros no país. Agora pretendo organizar um projeto para discutir o racismo ambiental na Uneafro. Também participo do Ocupa Política, movimento que incentiva candidaturas ambientalistas no Brasil.
Como você enxerga o movimento ambientalista hoje, diante das questões urgentes da população periférica das grandes cidades brasileiras?
O movimento ambientalista brasileiro não pensa tanto nas pessoas e na biodiversidade das cidades. Seu olhar é elitista e conservacionista. Um exemplo foi quando surgiu a ideia de criar, no início da década, um aeroporto em Parelheiros, que felizmente não se efetivou. Pessoas que moram na região, que levam duas horas para ir trabalhar e duas para voltar, pensavam que, se houvesse um aeroporto, poderiam trabalhar lá.
Os ambientalistas não entendem e criticam posturas como essa. Ou dizem que compreendem o pensamento porque aquelas são pessoas ‘humildes’. Há uma soberba. A mesma contradição estava nas discussões sobre abertura de saídas no Rodoanel. A natureza vira vilã para algumas pessoas, pois precisam viver e morar.
Sempre tentei discutir nos conselhos dos quais participei como conciliar a conservação e a vida das pessoas, como inserir essas pessoas na pauta ambiental e fazer com que não morem dentro das represas em palafitas com um buraco no banheiro. Minha briga é para que o acesso à informação seja prioridade para quem mora nessas regiões. E para que tenham melhores condições de vida. Jovens não querem ficar no campo, longe não tem internet. E os moradores de outros locais não circulam por São Paulo, não andam de ônibus, não conhecem a cidade. As visões são estereotipadas.
Edição: Mônica Nunes
Foto: Arquivo pessoal