Aos 70 anos recém-completados, Maria do Socorro Teixeira Lima, a dona Socorro, é uma das principais defensoras dos direitos das quebradeiras de coco da palmeira babaçu (Attalea speciosa), planta típica do Cerrado e áreas de transição com a Amazônia, conhecida por seus múltiplos usos, com destaque para o óleo extraído da castanha.
Cercadas por fazendeiros que dificultam o acesso à matéria-prima – o babaçu -, essas mulheres começaram a se organizar nos anos 1980 e lutam, até hoje, por legislação que garanta seu direito de circulação e de colher o coco das palmeiras e para que as matas que as abrigam sejam conservadas.
Maria do Socorro participou da criação de organizações que representam as quebradeiras de coco e conseguiram o reconhecimento de sua atividade como uma profissão. E se tornou uma liderança de todas as populações tradicionais ao militar em redes como o Conselho das Populações Extrativistas (CNS) na Amazônia (antigo Conselho Nacional dos Seringueiros, fundado no Acre em 1985 por Chico Mendes]) e a Rede Cerrado, que congrega mais de 55 organizações que atuam com a causa socioambiental no bioma, da qual foi a presidente até o início deste mês.
Conciliando a vida na roça na região do Bico do Papagaio, em Tocantins, com o extrativismo do coco de babaçu e suas atividades representativas, dona Socorro conta, nesta entrevista, que o envenenamento das palmeiras é o mais recente e difícil problema que as quebradeiras de coco precisam enfrentar.
“Como não podem derrubar, os fazendeiros aplicam veneno e matam a palmeira em pé”.
Como você entrou na luta pelos direitos das quebradeiras de coco?
Comecei a quebrar coco aos sete anos com minha mãe, que partia os cocos para mim. Mas meu pai queria tirar minha mãe do coco e fomos para Imperatriz, no Maranhão, em uma área onde não tinha babaçu, mas ela acabou encontrando babaçu novamente…
Já casada, nos anos 1980, me mudei para o Tocantins e, mesmo tendo estudado, me tornado professora, me engajei novamente na atividade de quebradeira de coco. Também comecei a participar das pastorais da Igreja, dos cursos de formação, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Quando mataram o padre que nos acompanhava, por defender as classes menos favorecidas, nos revoltamos e resolvemos nos organizar.
Fomos puxando as mulheres, tirando de trás do tanque, de dentro de casa, botamos elas na rua e passamos a gritar e a criar os movimentos aqui na região do Bico do Papagaio. Criamos o Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco de Babaçu (MIQCB) e a Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio (ASMUPIP).
Começamos a luta pela defesa do babaçu, porque também perdemos várias companheiras que foram mortas tentando exercer a atividade, já que os fazendeiros não queriam que tivéssemos acesso ao babaçu. Foi uma luta muito pesada no início, tanto em Tocantins, como no Maranhão, no Pará e no Piauí. Nos organizamos para defender o valor do babaçu, mas também para que pudéssemos quebrar coco em qualquer canto onde ele estivesse. Também defendemos a permanência da palmeira em pé, pois já naquela época derrubavam muito.
Qual é o conflito das quebradeiras de coco com os fazendeiros?
Os fazendeiros não deixavam a gente quebrar os cocos, botavam jagunços para perseguir e matar as mulheres. Começamos a nos organizar, tirávamos e quebrávamos coco escondidas, mas é difícil porque tem a ‘zoada do macete’.
Passamos a quebrar de mutirão e a lutar pelo direito de quebrar o coco onde ele estivesse. Por isso criamos o MIQCB para discutir a Lei do Babaçu Livre (que vale para seis estados) , porque o babaçu não é propriedade de ninguém, quem plantou foi Deus, temos direito à essa matéria-prima.
Vocês conseguiram obter o direito ao babaçu?
A luta continua, conseguimos ter a lei estadual há mais de 15 anos no Tocantins, em 2008, mesmo com restrições, mas nunca achamos um deputado federal que encaminhasse essa lei para ser aprovada nacionalmente.
Vários municípios também criaram leis nesse sentido tanto aqui em Tocantins, como no Maranhão e no Piauí, mesmo que sejam de difícil execução. Vamos sempre lutar pelo babaçu, palmeira que chamamos de mãe, porque dela se tira o sustento de várias famílias. Do coco, tiramos azeite, do azeite fazemos sabão, temperamos o feijão, da casca, fazemos carvão. Essa palmeira nos dá tudo de graça, por isso que a gente morre para defendê-la.
Atualmente, não apenas derrubam o babaçu, como usam veneno nas palmeiras, é uma calamidade.
Quebrar coco é uma atividade considerada feminina?
Não! Há muitos homens na atividade, muitos pais de família criam os filhos quebrando coco. Mas ficamos conhecidas como quebradeiras de coco porque foram as mulheres que se organizaram. Os homens podem se engajar no movimento, mas como participantes, assessores, técnicos, mas a liderança é nossa.
Como você se tornou uma líder não apenas das quebradeiras, mas das populações tradicionais?
Nossas áreas de babaçu têm os dois biomas, alguns municípios no Cerrado e outros na Amazônia, estamos aqui nesse meio. Por conta disso, acabei participando da diretoria do Conselho das Populações Extrativistas, o CNS, que teve origem com os seringueiros do Acre. Passei 25 anos na diretoria do CNS. Como estava na diretoria do MIQCB, também fui convidada para participar de uma assembleia da Rede Cerrado, do qual já éramos afiliadas.
Lá, me indicaram para ser a presidente da Rede, cargo que exerci por dois mandatos até o início deste mês de abril. Com isso, represento extrativistas dos dois biomas. E assim descobrimos a importância da atuação em rede. Uma entidade sozinha é como você bater na cabeça de um prego com uma luva ou uma pluma. Ele nunca entra.
Percebemos que precisamos bater pesado, com uma marreta, que entra e arrebenta. Por isso nos unimos. Sabemos na pele que a história de uma indígena é a mesma de uma quebradeira de coco ou de uma agricultora familiar. A discriminação, o sofrimento e as necessidades são os mesmos.
Juntos, somos mais fortes, por isso temos redes para tudo e, quando estou falando, é em nome das quebradeiras, dos indígenas, pescadores, ribeirinhos, geraizeiros, todo mundo. Onde houver extrativistas fazendo a mesma coisa que eu, estarei defendo seus direitos.
Como concilia a vida de liderança com viagens e reuniões com sua rotinha de quebrar coco, fazer sua farinha, sua tapioca…
Eu fazia e ainda faço agenda de uma coisa e outra quando preciso viajar: tal dia não pode arrancar mandioca porque não vou estar, tal dia não pode plantar roça porque não vou estar. Mas agora está melhor para mim…
Consegui uma parceria por conta de participar do comitê do Programa DGM Global (Dedicated Grant Mechanism for Indigenous Peoples and Local Communities) – iniciativa FIP/Fundo de Investimento Floresta tem a finalidade de conceder subsídios destinados a melhorar a capacidade dos Povos Indígenas e Comunidades Locais (PICL) – e eles colocaram internet via satélite na minha casa, que fica na roça, em Praia do Norte, na beira do rio Tocantins.
Pago só a mensalidade, que é muito cara (R$ 250), mas facilitou estar em reuniões e participar de lives.
Quantas são as quebradeiras de coco e quais os principais desafios para a categoria?
Onde tem quebradeira, seja no movimento ou não, nos quatro estados, estamos lá para ajudá-las. Mas calculamos que as quebradeiras de coco organizadas com as quais trabalhamos diretamente são aproximadamente 4 mil.
Nosso maior desafio, que atinge todos que dependem do babaçu, é o envenenamento das palmeiras, com um veneno que aplicam com motosserra e que a palmeira morre em pé.
Os proprietários de terra fazem isso porque é proibido derrubar. Outro problema é o que chamam de desenvolvimento capitalista, que devasta o babaçu para plantar soja, eucalipto, teca.
Um terceiro é uma grande empresa do Tocantins que compra o coco inteiro na região e nós ficamos sem nada. No Maranhão, as companheiras ainda enfrentam cercas elétricas e criação de búfalos. Além da questão da devastação da floresta, que seca os rios e acaba com plantas e animais.
Com o uso indiscriminado de veneno para matar pragas, elas acabam aumentando, com mais mosquitos, morcegos. E também bebemos água contaminada. Isso vale para Amazônia e Cerrado.
É um grande desafio lutar com quem tem dinheiro. Eu até fiz um versinho pensando nessas coisas:
‘As empresas cuidam do capital porque elas precisam de dinheiro;
As empresas cuidam do capital e nós cuidados da terra;
Elas precisam de dinheiro e nós precisamos de alimentos;
Eles têm poder e nós temos vida’.
Edição: Mônica Nunes
Foto: arquivo pessoal