
Poucas ambientalistas brasileiras circularam com tamanha influência tanto em cargos públicos quanto em ONGs. Maria Cecília Way de Brito, ou Ciça como é conhecida, possui uma extensa trajetória ambiental, que se iniciou na Secretaria Estadual de Meio Ambiente de São Paulo, e inclui a façanha de ter sido a primeira (e única até hoje) mulher a dirigir o Instituto Florestal.
Por quase quatro anos, foi também secretária Nacional de Biodiversidade e Florestas, no Ministério do Meio Ambiente, quando ajudou a criar mais de 6 milhões de hectares de unidades de conservação e deu início ao processo de monitoramento dos biomas Caatinga, Cerrado, Pantanal e Pampa, em parceria com o Ibama.
Ainda coordenou a Aliança pela Conservação da Mata Atlântica e foi secretária-executiva do WWF-Brasil por quatro anos.
Ciça, que hoje atua no Instituto Ekos Brasil, é uma incansável defensora das áreas protegidas no país, sejam unidades de conservação, territórios das populações tradicionais ou terras indígenas.
“É falácia dizer que ainda precisamos ocupar essas áreas naturais ou destruir povos originários para manter nossa civilização. Precisamos cuidar e compreender melhor essas áreas. Sua valorização ética é a mais importante e nossa sociedade tem perdido essa capacidade nos últimos anos, principalmente neste momento em que vivemos”, contou ao blog Mulheres Ativistas do Conexão Planeta.
De onde veio o interesse pelo meio ambiente?
Começou na infância e na adolescência, quando visitava amigos dos meus pais em Mato Grosso do Sul e convivia com a vida no campo. Quando tive que decidir o que estudar, quis juntar Biologia, que eu adorava, com algo que tivesse mais mercado e entrei na Agronomia, na Universidade de São Paulo (USP).
Também escolhi Fonoaudiologia na PUC, mas quis mesmo voltar para a agronomia e desisti desse curso. Quando me formei, com 20 anos, não tinha onde trabalhar. Fui visitar o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e acabei trabalhando lá, de graça, na área de Geologia aplicada com atuação em análise de solos.
As pessoas do IPT eram bastante politizadas e me indicaram para outros locais, onde eu poderia ser contratada, de fato. Assim, fui parar na Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista (Sudelpa), ligada à Secretaria do Interior do Estado de São Paulo. Era uma autarquia criada no período do governo militar e que tinha uso político: fazia estradas vicinais para prefeitos etc. em todo o litoral do estado.
Estávamos no início do governo Montoro e, na Sudelpa, conheci pessoas que tinham vindo da luta por terras em Trindade, no litoral do Rio de Janeiro, onde empreendedores imobiliários construíam condomínios de alto padrão e, para isso, expulsavam os caiçaras de suas terras.
Adriana Mattoso e Fausto Pires de Campos, pioneiros na área ambiental no estado, coordenavam esse grupo, que se chamava Grupo de Resolução de Conflitos de Terra. Era um grupo de jovens na faixa dos 20 aos 30 anos que enfrentava grileiros e ajudava os posseiros na regularização de suas terras, vários dos quais estão, hoje, entre os grupos quilombolas do Vale do Ribeira.
O que aconteceu com esse grupo?
Parte dessas lutas por terras estava em áreas ainda conservadas, como a que mais tarde passou a fazer parte da Estação Ecológica da Jureia, em Picinguaga, no litoral norte, e, no Vale do Ribeira, no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar). Tínhamos um território ainda em formação no estado, com muitas áreas devolutas e algumas áreas de conservação, como os parques estaduais de Jacupiranga e da Serra do Mar.
Pela Sudelpa, fiz parte de um grupo de trabalho com o Incra e a Funai para criar terras indígenas em áreas que eram ocupadas por esses povos. Fui para o campo atrás das informações necessárias para montar os processos de desapropriação de benfeitorias e demarcação dessas áreas. Conseguimos constituir sete terras indígenas em São Paulo com territórios grandes, como a do rio Silveira, na Barra do Una, em São Sebastião.
Como chegou à área de conservação ambiental?
Com a necessidade de acelerar processos de garantia de direitos, o governador criou as secretarias de Meio Ambiente e a de Assuntos Fundiários. Nosso Grupo de Conflitos de Terra ficou dividido entre as duas secretarias e eu fui para a do Meio Ambiente. Estávamos recém entrando na democracia e havia um espírito de construção. Éramos quase uma ONG dentro do governo. Brigávamos, pelos menos, providos de terra. Isso me levou a ter uma postura de contestação, um ativismo forte que me acompanha até hoje.
Passei por um processo seletivo e ganhei uma bolsa de estudos no Canadá. No fim do período da bolsa poderia ter ficado no país, mas estava tão envolvida com meu trabalho que queria voltar e aplicar o que tinha aprendido lá. Quando voltei, fui enviada sem equipe para o Núcleo Picinguaba (do Parque Estadual da Serra do Mar), onde tinha também que lidar com o entrosamento entre conservação e populações locais.
Eu tinha uma motinho e andava com ela para fazer contato com quem produzia mandioca e fazia farinha. Fiquei lá dois anos, quando foram inauguradas as estruturas para a visitação do parque. Ganhei mais uma bolsa e passei um ano no Japão estudando unidades de conservação.
Por que saiu da Secretaria de Meio Ambiente?
Comecei a querer outros desafios. Adriana e Fausto tinham contato com o Fabio Feldmann, que já era deputado federal e, por meio deles, o conheci. Eu queria sair do estado e fui trabalhar no mandato do Fabio. Atuei nas suas campanhas para deputado federal e prefeito de São Paulo e também e em seus mandatos. Fiz de tudo, inclusive acompanhei a construção da Rio-92.
Quando ele virou secretário de Meio Ambiente em São Paulo, voltei para a secretaria. Fui coordenar o Programa Estadual de Biodiversidade. Nesse período, participei da gênese do Programa Biota e, depois, de sua coordenação.
Quando o Feldmann deixou a secretaria, em 1999, saí novamente e, pela primeira vez, fui trabalhar em uma ONG, como coordenadora da Aliança para a Conservação da Mata Atlântica, que acabava de ser criada e era uma parceria entre a SOS Mata Atlântica e a Conservação Internacional. Fiquei lá uns quatro anos, quando fizemos vários esforços para mobilizar jornalistas e criar reservas particulares do patrimônio natural (RPPN), além de mobilizar recursos para o bioma.
Voltei novamente para a Secretaria do Meio Ambiente a convite do professor José Goldemberg, quando fui indicada para ser diretora geral do Instituto Florestal (IF), onde fui a primeira e única diretora geral mulher até hoje. O IF tem mais de cem anos!
Como foi a experiência no Instituto Florestal?
Quando cheguei lá, me vi naquele prédio imponente, com uma sala linda, cheia de detalhes em madeira, uma mesa enorme e, por um momento, parei em frente ao espelho do banheiro e me perguntei: ‘Como vim parar aqui?’. Havia desconfiança, mas o fato de eu ser engenheira agrônoma ajudava. Me chamavam de ‘doutora’ e sempre fui muito respeitada.
O Instituto Florestal foi criado para fazer pesquisa com madeira nativa e, também, pinus e eucalipto. Assim, o IF recebeu do governo terras no Cerrado e na Mata Atlântica, que depois viraram áreas protegidas no estado.
Assumi em 2003 com o IF falido e um monte de áreas protegidas sucateadas, sem investimento suficiente. Para avançarmos, voltamos a vender parte da madeira plantada, que já não servia para a pesquisa, o que era a forma de operar de todos os institutos de pesquisa.
Nessa altura, o IF cuidava de todas as unidades de conservação estaduais (menos o Parque Intervales) e, dentro das estações experimentais, havia 20 mil hectares plantados com pinus e eucaliptos. O plano foi cortar mil hectares por ano, replantar e usar os recursos da venda da madeira e da resina (subproduto do pinus) para cuidar das unidades de conservação. Assim, teríamos sempre mil hectares prontos para colher e 19 mil em estágios de crescimento diferente.
O passo mais ousado que dei foi propor o Sistema Estadual de Florestas. Criamos o sistema e transferimos todas as unidades de conservação para a Fundação Florestal, que tinha mais condição administrativa de cuidar dessas áreas, mas deixando recursos para o IF se concentrar em pesquisas, sua função mais importante.
Quando mudou o governo, porém, reverteram o que havia sido feito. Ainda fiquei na Secretaria de Meio Ambiente até ser convidada para ir para o Ministério do Meio Ambiente (MMA), para a segunda gestão de Ministra Marina Silva.
Como foi a experiência como secretária de Biodiversidade e Florestas? É possível mudar as coisas a partir do governo?
João Paulo Capobianco, que era o secretário de Biodiversidade e Florestas de Marina Silva no MMA, na primeira gestão, fez o convite. Capô assumiu a Secretaria Executiva e me convidou para assumir o seu antigo posto. Estar no governo federal é completamente diferente de estar no governo do estado, principalmente por conta da visibilidade.
Logo que entrei, fui a um Congresso de Unidades de Conservação em Foz do Iguaçu, feliz da vida de encontrar muitos amigos. Lá, em um auditório enorme, tive que fazer a abertura e, de repente, boa parte da plateia se levantou e colocou nariz de palhaço em uma manifestação contra o Instituto Chico Mendes (ICMBio), que tinha acabado de ser criado pelo MMA.
Mas sobrevivi e, sim, é possível fazer muita coisa quando falamos de uma gestão como a que Marina e o Carlos Minc, com suas equipes, fizeram nas duas gestões do Lula.
Quando entrei, as coisas já estavam mais difíceis. O restante do governo havia percebido que o Meio Ambiente tinha colocado as ‘manguinhas de fora’ e os ministros da Casa Civil, Minas e Energia e da Agricultura vivam por lá negociando. Mas houve muitos avanços, como a criação de um grande número de unidades de conservação, o Serviço Florestal e o próprio ICMBio.
Na minha gestão, foram mais de 6 milhões de hectares de novas áreas protegidas. Se você quer e está cercado de pessoas sérias, dá para fazer, mesmo com dificuldades como a falta de recursos, as pressões contrárias e as amarras para o uso do dinheiro.
Também brigamos muito pela Lei de Acesso a Recursos Genéticos, principalmente com a Embrapa, o Ministério da Agricultura e o Ministério da Ciência e Tecnologia. Fiquei quase quatro anos no cargo, incluindo toda a gestão do Carlos Minc, que era um ministro muito a fim de fazer as coisas acontecerem. Conseguiu coisas incríveis em relação ao Código Florestal e à política de clima. Tudo depende de quem está nos cargos.
O que fez após deixar o MMA?
Voltei para São Paulo e, depois de um breve período, fui convidada para trabalhar no WWF-Brasil e, logo depois, para ser secretária-executiva da organização. Foi outra experiência incrível, por representar o Brasil em uma ONG gigante e mundial, onde precisamos disputar recursos com outros escritórios e onde também se faz política.
Cheguei com tudo para colocar o WWF-Brasil na trilha do ativismo, em plena guerra pelas mudanças do Código Florestal. Formamos uma campanha que dividimos com as ONGs parceiras, que depois virou a campanha Veta Dilma.
Minha saída do WWF foi a única vez que disseram que não queriam mais meu trabalho. Trouxeram um executivo do Santander e ainda me disseram que ele iria ganhar mais do que eu, do nada. Fiquei desarvorada, frustrada, e fui refazer minha vida.
Logo fui trabalhar na Aliança da Água e, em seguida,coordenar um projeto do Instituto Ekos Brasil, ONG ainda pequena que venceu um edital para produzir planos de manejo das áreas de proteção ambiental marinhas para a Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo.
Esse projeto é um dos que teve problemas com Ricardo Salles, atual ministro do Meio Ambiente?
Quando vencemos o edital, a secretária era a Patrícia Iglecias. De repente, a Patrícia sai e entra o ainda desconhecido Ricardo Salles. Ele assumiu a Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo no final de 2016, quando nosso projeto andava de vento em popa e quando deveríamos ser pagos pelo produto que já havíamos entregue. O Salles simplesmente proibiu o pagamento, alegando que as ONGs ganhavam muito para fazerem os planos de manejo.
Detalhe – o próprio governo havia decidido sobre o projeto, sobre quantas pessoas contratar e também tinha estabelecido o valor. Tivemos que deixar de pagar 50 profissionais que haviam trabalhado até então. O dinheiro era do BID, não estava faltando e era para isso mesmo. O contrato foi suspenso e passamos um ano até receber parte dos recursos e a equipe não recebeu tudo. Os planos de manejo que deveriam ser entregues em 2017, foram entregues três anos depois, feitos na própria SMA.
Estou no Ekos até hoje. É uma ONG que nasceu filha de uma empresa (a Geoklock). É uma organização que prefere não se manifestar politicamente e fico ‘roendo as unhas’, mas entendo. Porém, continuo ativista como pessoa física, vou como Ciça.
Por que as áreas protegidas são tão relevantes?
Precisamos compreender que é necessário para o planeta e para a nossa própria vida saber conviver com outras espécies, que evoluíram ao longo de milhões de anos. Saber conservar as áreas naturais, sobretudo as maiores, que podem conter mais espécies e refletir sobre as possibilidades de evolução nesse planeta.
Além disso, hoje se fala muito dos serviços prestados pelas áreas naturais, como a manutenção da água, por evitar a erosão do solo, propiciar a polinização, controlar a temperatura local e o estoque de carbono na atmosfera. Esse é um viés pouco observado pelos governos e pelos setores financeiros, mas talvez seja o que melhor se comunica com o capitalismo.
Mais: as áreas protegidas permitem que nós, cidadãos urbanos, possamos ter pelo menos a sensação de que existem locais onde o formato de vida na Terra se mantém desde antes de nossa espécie habitar o planeta.
Qual a importância de se proteger os territórios das populações tradicionais, como os indígenas?
Povos colonizados, em vários pontos do planeta, sofreram muita violência física, moral e o extermínio por meio da eliminação de suas culturas: línguas, tradições e, mais do que tudo, território. Não há povos sem território, veja o conflito Israel e Palestina. Manter terras indígenas é o mínimo que podemos fazer por esses povos, suas culturas e para que outras formas de pensar o mundo possam existir.
As terras indígenas guardam povos que utilizam os recursos naturais de forma diferente. Para eles, não são recursos como nós vemos, mas podem ser seres vivos, entes com características sobre-humanas, que precisam ser respeitados.
O líder indígena Ailton Krenak menciona claramente que o rio Doce é um ente para seu povo. Isso existe em todos os grupos originais, não dá para simplificar como se fossem iguais e detentores dos mesmos conhecimentos. Há, ainda, a importância econômica das terras indígenas. Aos indígenas cabe o usufruto do seu território, e por isso prestam serviços ambientais tão ou mais importantes que as unidades de conservação.
Qual a situação do Brasil em relação às áreas protegidas?
Não temos uma situação confortável. Precisamos entender que o planeta é finito e não podemos mais usar como usamos hoje. Conservar é, em primeiro lugar, essencial para o ser humano. Se não fosse por precisar dar guarida à diversidade de povos, línguas, culturas, cosmologias, deveríamos lembrar que podemos aprender como as coisas podem funcionar. E temos que pensar também nos oceanos, que acabam sendo o ralo da nossa civilização.
Eles conseguem reciclar muita coisa, mas nossa capacidade de produzir lixo é maior. Seja como terra indígena ou como unidade de conservação, há que se ter em maior número. Sem isso, haverá um duro reflexo para nós mesmos.
É falácia dizer que ainda precisamos ocupar essas áreas naturais ou destruir povos originários para manter nossa civilização. Precisamos cuidar e compreender melhor essas áreas e esses povos. A valorização ética é a mais importante e nossa sociedade está perdendo isso nos últimos anos, principalmente neste momento que estamos vivendo.
O que te move a continuar no ativismo?
O que trouxe da minha experiência, que é procurar ter leitura crítica das coisas. Esta tentativa de estar com a antena ligada é a diferença. Antes, quem trabalhava no governo tinha mais esse espírito de luta, menos preocupação com o próprio emprego e mais com o que estava fazendo.
Hoje, parece que se está mais preocupado em voltar para casa com o salário do que em salvar o mundo. Ainda acredito que precisamos ter esse espírito de luta. Por isso, não deixo de me posicionar, tentar fazer melhor e aprender sempre.
Edição: Mônica Nunes
Foto: arquivo pessoal