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Investigação revela tentativa de criadouro alemão de enviar mais 60 ararinhas-azuis para zoológico na Índia

Documentos compartilhados com exclusividade pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) com o Conexão Planeta revelam que a Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP) tentou enviar uma nova ‘remessa’ de ararinhas-azuis para o Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom, um zoológico em Gujarat, na Índia.

A intenção da ACTP de exportar 60 ararinhas-azuis para o país asiático foi confirmada pelo Bundesamt für Naturschutz (BfN), a Agência Federal de Conservação da Natureza da Alemanha, e pelo Instituto Nacional de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama).

A ACTP é um criadouro particular da Alemanha, com sede em Brandenburg, especializado na reprodução em cativeiro de aves exóticas e ameaçadas de extinção, entre elas, a ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), espécie endêmica da Caatinga baiana, que devido ao tráfico internacional de animais silvestres, foi declarada oficialmente extinta na natureza nos anos 2000.

Por possuir o maior plantel de ararinhas em cativeiro do mundo – grande parte delas herdada de um criador do Catar, um sheik colecionador de aves que morreu -, e ter obtido sucesso na reprodução, em 2019, o Ministério do Meio Ambiente assinou um acordo de cooperação técnica com a ACTP para o início de um programa de reintrodução da espécie na Bahia.

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Em março de 2020, a associação alemã enviou para o Brasil 52 ararinhas-azuis (26 machos e 26 fêmeas), que foram encaminhadas para o Refúgio de Vida Silvestre, em Curaçá, onde foi construída uma base do projeto, totalmente financiada e mantida pela ACTP. Em 2022 houve a soltura de 20 aves, todavia, algumas foram alvo de predadores e nos anos seguintes não houve mais reintroduções.

Entretanto, após cinco anos de vigência do acordo, há poucas semanas o Brasil anunciou que não renovaria a parceria com o criador alemão. Além de uma série de denúncias sobre a idoneidade do proprietário da ACTP, Martin Guth, o estopim para o fim da relação parece ter sido o governo brasileiro ser pego de surpresa, em outubro de 2023, ao descobrir que 26 ararinhas-azuis tinham sido enviadas ao Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom, na Índia.

Apesar de as ararinhas levadas para o zoológico indiano terem nascido na sede da ACTP, na Europa, segundo o acordo entre a associação e os órgãos ambientais do Brasil, a entidade precisava consultar as autoridades brasileiras e receber uma permissão para tal. O que não aconteceu.

Poucos dias depois da notícia ser publicada, o governo afirmou que não tinha autorizado o envio e nem reconhecia a parceria entre a ACTP e o Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom. Ao mesmo tempo, o criadouro alemão rebatia a informação e afirmava que havia informado os órgãos competentes do país.

Ararinha-azul: o tão sonhado programa de reintrodução é envolto em muitas denúncias e polêmicas
Foto: divulgação Zoológico de São Paulo

ACTP queria enviar mais 60 ararinhas para a Índia

A investigação sobre a intenção da ACTP se deu a partir da transcrição de um documento do governo da Alemanha que detalha questionamentos de parlamentares do país sobre diversos assuntos, entre eles, a transferência de ararinhas-azuis para outros países da União Europeia e fora do bloco.

Quem mostrou preocupação sobre a questão foi o deputado do parlamento Klaus Mack. Ele pergunta quantas autorizações foram concedidas, quantas exportações e importações foram realizadas desde 2005 e ainda menciona um “inquérito do Comitê Permanente para a Conservação das Espécies e dos Biótopos do Grupo de Trabalho Federal/Länder para a Conservação da Natureza, Gestão da Paisagem e Recreio (LANA) sobre a transferência de araras-azuis”.

O Conexão Planeta entrou em contato com o Bundesamt für Naturschutz que, por e-mail, esclareceu que em 2024 a ACTP solicitou duas transferências de ararinhas-azuis – uma de 41 indivíduos para o Brasil para fins de reprodução/reintrodução e outra, de 60 aves da espécie, para o Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom, para fins de reprodução.

Segundo a Agência Federal de Conservação da Natureza da Alemanha, “nenhuma das exportações foi, em momento algum, aplicada para fins comerciais”.

Contudo, o órgão alemão declara que “no entanto, não foram emitidas licenças de exportação para a transferência para o Centro Zoológico de Resgate e Reabilitação na Índia”.

“O BfN ainda não decidiu formalmente sobre o pedido, mas seguirá devidamente o procedimento de consulta com o governo brasileiro agindo através de sua Autoridade de Gestão da CITES [Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção], ou seja,o Ibama. O BfN só permitiria exportações de arinhas-azuis se estivessem de acordo com o plano de manejo e endossado pelo governo brasileiro”, afirmou por e-mail, Ruth Birkhoelzer, assessora de imprensa da agência federal da Alemanha.

O Conexão Planeta entrou em contato com a equipe técnica do IBAMA, que também confirmou que “em carta datada de 14/03/2024, e dirigida, no Brasil, ao ICMBio, Ibama, MMA e MRE, a ACTP informou da sua intenção de enviar 60 animais para o Greens Zoological Rescue & Rehabilitation Centre, em Gujarat, na Índia”.

Em resposta à carta, o ICMBio, órgão responsável pelo Programa de Manejo da Ararinha-Azul, informou ao criador alemão que a transferência de espécimes para o zoológico indiano representava uma mudança de estratégia realizada unilateralmente pela ACTP, não prevista no acordo de cooperação técnica assinado em 2019.

Além disso, o ICMBio ressaltou que o interesse central era “favorecer a plena reintrodução das ararinhas-azuis em seu habitat natural, no interior do bioma Caatinga, cujas particularidades muito diferem tanto do continente indiano quanto do europeu”.

Mesmo assim, apesar do Brasil ter deixado claro que não concordava com o envio de araras para outro país, no começo de maio, o Ibama foi informado pela Autoridade Administrativa CITES alemã, que a ACTP havia protocolado, junto ao governo alemão, requerimento de emissão de licença de exportação das 60 ararinhas para o zoológico na Índia.

Mais uma vez, o ICMBio foi categórico em não recomendar a autorização e o Ibama deixou claro para as autoridades alemãs que não endossava a operação.

Venda ou transferência?

Quando pronto, o Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom, promete ser o maior zoológico do mundo. O idealizador do projeto é Anant Ambani, de 29 anos, filho do homem mais rico da Índia, o magnata Mukesh Ambani, fundador e CEO da Reliance Industries, grupo envolvido nas áreas de refino de petróleo, petroquímica, gás, varejo e indústria têxtil, e que movimenta algo em torno de US$ 100 bilhões por ano.

Informações preliminares revelam que o zoológico, localizado em Jamnagar, numa área de mais de 1 mil hectares, dentro do complexo da refinaria dos Ambani, terá 1.689 animais pertencentes a 79 espécies. Destas, 27 serão exóticas, como onças-pintadas, capivaras, jacarés caiman –espécies da América do Sul -, assim como as ararinhas-azuis.

De acordo com a Reliance Foundation, haverá vários centros de pesquisa e conservação para espécies ameaçadas de extinção e hospitais para atender os animais.

A fundação divulgou que já tinham sido fechadas parcerias com organizações como a International a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). No entanto, o Conexão Planeta entrou em contato com a instituição e ela negou ter qualquer ligação com o zoológico.

A dúvida que fica é se as ararinhas-azuis enviadas para o projeto babilônico dos Ambani foram comercializadas ou apenas “transferidas”.

Em um documento da CITES com a pauta da reunião entre os países membros, que ocorreu em Genebra, na Suíça, no final de 2023, e quando foi colocada em discussão uma proposta para a comercialização de araras brasileiras, rejeitada veementemente pelo Brasil, um trecho mencionava que os “significativos valores” envolvidos na transação entre a ACTP e o zoológico indiano não configuravam “comércio” já que seriam aplicados em projetos de conservação.

“Para o Brasil, as operações citadas acima deveriam ter sido consideradas majoritariamente comerciais. O governo brasileiro não tem nenhum controle ou clareza quanto à entrada de recursos na ACTP e a respectiva destinação destes, de modo que não há como separar lucro ou ganho pessoal dos recursos efetivamente aplicados pela ACTP no programa de conservação”, diz a equipe técnica do Ibama. “Em todos os demais projetos de conservação de aves ameaçadas realizados com conhecimento e apoio do Estado brasileiro, nunca foi sequer considerada a possibilidade de obtenção de recursos pela venda de indivíduos da espécie”.

Outro ponto que chama atenção é o governo alemão ter permitido a primeira exportação das 26 ararinhas-azuis para a Índia, no ano passado, mesmo sem o Brasil ter permitido a transferência.

Desde 2019, há uma petição internacional com mais de 55 mil assinaturas pedindo que o Bundesamt für Naturschutz investigue a ACTP e Martin Guth.

Também entramos em contato com Green Zoological, Rescue and Rehabilitation Kingdom e nunca obtivemos um retorno.

Trecho do documento da CITES menciona “remunerações significativas” na transferência das aves da ACTP

Estado brasileiro tem soberania sobre a espécie

A ararinha-azul é um dos tristes símbolos da extinção de animais no planeta. Não por menos, foi a personagem principal da animação “Rio”, que em 2011 fez o mundo inteiro conhecer a espécie, uma ave linda, toda azul, que só existia no Brasil e desapareceu da natureza, vítima do tráfico. Os poucos indivíduos que restaram foram parar ilegalmente na mão de colecionadores da Europa e do Oriente Médio.

“O Estado brasileiro tem ciência de que nunca houve exportação legal de ararinhas-azuis a partir do Brasil e que não há nenhum indivíduo vivo atualmente, no exterior, que descenda de animal que tenha sido retirado da natureza de modo legal. Nesse sentido, o estado brasileiro entende que tem, sim, soberania sobre a espécie”, afirma o Ibama.

Embora o governo do Brasil tenha sua posição declarada perante os membros da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção, criada para controlar as movimentações internacionais de animais, a emissão de licenças CITES compete às autoridades administrativas de cada país, assim como checar a legalidade da origem de um espécime e, com base nisso, permitir ou não as exportações e transferências.

“Na prática, uma licença de exportação de um espécime, ao ser emitida por um Estado, é tida, no país importador, como comprovação de origem legal de um espécime. Isto porque a emissão de licença de exportação pressupõe que a autoridade administrativa do Estado exportador verificou a legalidade da origem”, explica o Ibama.

Em 1990, o Brasil tentou organizar um grupo único dos criadores que possuíam ararinhas-azuis em seus planteis. A ideia, à época, era que estes criadores internacionais se submetessem às diretrizes e orientações de um programa de manejo populacional controlado pelo Estado brasileiro e, em troca, o país não confiscaria os espécimes retirados ilegalmente da natureza.

“Houve alguma adesão ao programa (mas não total) e embora os criadores tenham supostamente aceitado essas condições, houve muita transação de ararinhas-azuis sem aval do governo brasileiro, gerando muitos conflitos no grupo e diversos rompimentos”, admite o instituto.

Ainda segundo o Ibama, a ACTP foi aceita no Programa de Manejo Populacional em 2013. No início, a associação alemã não parecia ser uma instituição relevante nesse contexto, mas foi obtendo mais e mais indivíduos até que chegou a deter 90% da população de ararinhas-azuis em cativeiro, exercendo praticamente uma hegemonia no programa.

Dados do ICMBio apontam que a população atual de ararinhas-azuis mantidas em cativeiro no mundo é de pouco mais de 300 indivíduos. Desse total, 200 estão com a ACTP, na Alemanha, 40 em Curaçá e 27 em São Paulo. As demais se encontram no zoológico Pairi Daiza, na Bélgica, e no Greens Zoological, Rescue and Rehabilitation Centre, na Índia.

A despeito de todas as denúncias e polêmicas envolvendo a ACTP, a associação seguirá atuando no centro de reintrodução da Bahia.

26 ararinhas-azuis foram enviadas à Índia sem o aval do governo brasileiro
Foto: divulgação Zoológico de São Paulo

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Foto de abertura: divulgação Zoológico de São Paulo

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