Atualizado em 26/10/2020:
Em 22/10, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, retirou da pauta de 28/10 os julgamentos indicados nesta matéria, sem marcar nova data.
Havia enorme expectativa sobre este dia já que o julgamento referente à disputa das terras do povo Xokleng, de Santa Catarina, poderia ser determinante para o futuro das demarcações de terras indígenas no país, levando em conta a ‘repercussão geral do caso’, o que poderia eliminar de vez a proposta de ‘marco temporal’, que considera como terras indígenas apenas os territórios reconhecidos a partir de 1988, com a Constituição.
“Este julgamento é central para os povos originários e pode trazer uma definição a respeito do seu direito mais fundamental: o direito à terra”, lembra o CIMI (Conselho Indigenista Missionário).
Especula-se que a decisão de Fux se deve à pressão da bancada ruralista e do setor da mineração que exigiram que o STF aguarde a posse do novo ministro, Kássio Nunes, indicado por Bolsonaro para substituir Celso de Melo (aposentado) e apoiado por eles, que acontecerá em 5/11.
Coincidência ou não, a decisão de Fux coincide com a aprovação de Nunes, desembargador federal que atuava no TRF 1, em Brasília, pelo Senado.
Abaixo, leia o texto original publicado por nós em 22/10, pela manhã, para compreender o que está em jogo.
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Dois importantes julgamentos estão previstos para 28 de outubro no Supremo Tribunal Federal (SFT):
- o pedido de reintegração de posse feito pelo governo de Santa Catarina, por intermédio da Secretaria do Meio Ambiente (!), contra a demarcação da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ do povo Xokleng.
Como reconheceu a repercussão geral do caso, o ministro Edson Facchin, do STF, deve aproveitar a oportunidade para fixar orientações gerais para todas as demarcações do país (veja detalhes na última parte deste post) e - se será mantida ou não a medida cautelar deferida em maio, por Fachin, que suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 que, entre outras medidas, institucionaliza o marco temporal como norma dos procedimentos administrativos de demarcação, ou, em resumo: reduz os direitos dos indígenas sobre suas terras.
Este instrumento foi criado no governo Temer pela AGU – Advocacia Geral da União para inviabilizar estudos, barrar e reverter demarcações, desconsiderando os direitos dos indígenas aos seus territórios, e também determinar que a Funai “se abstenha de rever todo e qualquer procedimento administrativo de demarcação de terra indígena”.
Vale explicar que medida cautelar é um procedimento usado pelo Judiciário para prevenir, conservar ou defender direitos. Com base no Parecer 001, pelo menos 17 terras indígenas tiveram seus processos de demarcação devolvidos pela Casa Civil e pelo Ministério da Justiça para a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Com mais um detalhe: este órgão não protege mais os interesses dos indígenas, o que se intensificou em junho de 2019, quando o ex-delegado da Polícia Federal, Marcelo Augusto Xavier da Silva, assumiu a presidência do órgão por indicação do ministro Onyx Lorenzoni, com apoio de líderes da bancada ruralista.
Basta lembrar que, em abril deste ano, a Funai editou medida – Instrução Normativa (IN) nº 9/2020 – que permitia invasão, loteamento e venda de áreas em mais de 237 terras indígenas em processo de demarcação. Mas, felizmente, a pedido do Ministério Público Federal, seus efeitos foram suspensos pela Justiça Federal do Mato Grosso.
A data destes julgamentos torna-se ainda mais importante já que o STF pode decidir ou começar a decidir o futuro das demarcações das Terras Indígenas (TIs) no mesmo mês em que, há 32 anos, foi declarada a Nova Constituição Federal, transformando 5 de outubro no maior marco na história do país sobre a garantia dos direitos indígenas, em especial dos direitos a seus territórios.
Esperamos que o Supremo Tribunal Federal não ignore nem manche a Constituição.
Sim, que em 28/10 promova a Justiça como, em agosto de 2017, por exemplo, quando negou pedido de indenização ao governo do Mato Grosso referente à desapropriação de áreas para demarcação de terras indígenas, e ainda o penalizou a cobrir as despesas da defesa do processo. Ou quando, em julho deste ano, ordenou que o governo adotasse medidas urgentes para proteger os povos tradicionais durante a pandemia.
Em defesa dos direitos indígenas
Em 5 de outubro, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou uma nota para marcar os 32 Anos de Reconhecimento dos Direitos dos Povos Indígenas e alertar sobre a importância do julgamento.
Lembrou que “1988 encerrou um período sombrio na história do nosso país“, e que a Constituição “reconhece aos nossos povos no capítulo VIII “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarca-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, como garante o artigo 231.
“Esperamos, por todas essas ameaças e ataques – uma vez que tem a atribuição de zelar pelo respeito à Lei -, que o Supremo Tribunal Federal estabeleça, de uma vez por todas, a interpretação do marco legal do direito de ocupação tradicional dos nossos povos sobre suas terras, julgando o Recurso Extraordinário 1.017.365, que envolve os povos Xokleng, Kaingang e Guarani da T.I. Ibirama-La Klãnõ no estado de Santa Catarina, e que é considerado pelos ministros de ‘Repercussão Geral’, ou seja, terá caráter vinculante, impactando todos os casos semelhantes no país inteiro”.
E o texto termina assim: “Obviamente que os nossos povos anseiam a reafirmação do Indigenato – o direito originário, congênito sobre as nossas terras e nossos territórios – contra a tese do marco temporal defendido pela bancada ruralista e por forças contrárias aos nossos direitos fundamentais”. Nós também.
O direito originário dos povos indígenas
Esta semana, em 20 de outubro, o assessor jurídico da Apib, Eloy Terena, também publicou artigo no site da instituição para falar sobre O direito originário dos povos indígenas. Vale muito a leitura. Ele detalha tudo que está em jogo nos processos que serão julgados pelo STF em 28/10.
Eloy- Luiz Henrique Eloy Amado – é Terena da aldeia Ipegue (MS)), doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional (UFRJ) e pós-doutorando na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França.
Ele tem sido figura fundamental na defesa dos direitos indígenas e obtido importantes conquistas como em agosto deste ano, quando o STF acatou decisão do ministro Barroso sobre ações de proteção reivindicadas pelos indígenas na pandemia.
“Por 9 votos a zero, o Supremo referendou a liminar, reconhecendo a legitimidade ativa da APIB e sua responsabilidade em impetrar ações diretas ao STF”. Isso foi o que Eloy disse em vídeo gravado logo após o final da sessão. “Isso é fundamental, tem um significado muito forte para os povos indigenas”.
(saiba mais sobre esse tema em Bolsonaro enfraquece PL de proteção aos povos tradicionais na pandemia, mas ministro do STF ordena medidas urgentes).
Entenda o que está em jogo
Neste mês em que se celebram 32 anos da Constituição, documento que garantiu direitos aos povos indígenas, as organizações Apib, ISA e CIMI divulgaram texto que detalha tudo que está em jogo nesta luta que envolve os defensores de projetos desenvolvimentistas e do marco temporal contra os verdadeiros donos destas terras.
Em 2019, o STF reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, caso que discute uma reintegração de posse movida contra os povos Xokleng, em Santa Catarina. Isso significa que a decisão tomada nesse julgamento, marcado para iniciar no dia 28 de outubro, repercutirá sobre todos os povos indígenas do Brasil. A Suprema Corte poderá, assim, dar uma solução definitiva aos conflitos envolvendo terras indígenas no país. Embora a data do julgamento esteja marcada, isso não quer dizer que ele será finalizado nesse mesmo dia: algum ministro pode pedir vistas do processo ou a presidência do STF pode alterar sua pauta por outros motivos.
Entenda o que se discutirá nesse julgamento e o que está em jogo:
Do que trata o RE 1.017.365?
O Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365, que tramita no STF, é um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada – e já identificada – como parte de seu território tradicional.
A terra em disputa é parte do território Ibirama-Laklanõ, que foi reduzido ao longo do século XX. Os indígenas nunca deixaram de reivindicar a área, que foi identificada pelos estudos antropológicos da Funai e declarada pelo Ministério da Justiça como parte da sua terra tradicional.
Por que esse julgamento é central para o futuro dos povos indígenas no Brasil?
Em decisão publicada em 11 de abril de 2019, o plenário do STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do julgamento do RE 1.017.365. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário.
Há muitos casos de demarcação de terras e disputas possessórias sobre terras tradicionais que se encontram, atualmente, judicializados. Também há muitas medidas legislativas que visam retirar ou relativizar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Ao admitir a repercussão geral, o STF reconhece, também, que há necessidade de uma definição sobre o tema.
Quando ocorrerá o julgamento?
O julgamento foi colocado na pauta do STF do dia 28 de outubro de 2020 pelo novo presidente da Corte, o ministro Luiz Fux. Ele ocorrerá de forma telepresencial, ou seja, por meio de um sistema de votação virtual, por vídeo, que substituiu sessões presenciais em função da pandemia da covid-19. As sustentações orais também ocorrerão telepresencialmente.
As partes devem se manifestar em até 15 minutos cada. Além delas, os amici curiae ou amigos da corte terão, ao todo, 30 minutos para sustentação oral – tempo que deverá ser dividido entre aqueles que tiverem interesse em se manifestar.
O que está em jogo?
No limite, o que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra.
Há, em síntese, duas teses principais que se encontram atualmente em disputa: de um lado, a chamada “teoria do indigenato”, uma tradição legislativa que vem desde o período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário – ou seja, anterior ao próprio Estado.
A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição e garante aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
Do outro lado, há uma proposta mais restritiva, que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado marco temporal (explicado a seguir).
Há ainda a possibilidade de reavaliação das chamadas “salvaguardas institucionais”, conhecidas como “condicionantes”, fixadas, em 2009, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol e que igualmente restringem a posse e o uso fruto exclusivos dos povos indígenas sobre suas terras.
(devido a esse processo, em 2008, a Joenia Wapichana (deputada federal) se tornou a primeira advogada indígena a comparecer perante o Supremo Tribunal Federal (STF): ela defendeu a demarcação em área contínua da Reserva Raposa Serra do Sol na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e fez pronunciamento histórico)
O que é marco temporal?
O marco temporal é uma tese que busca restringir direitos constitucionais dos povos indígenas. Nessa interpretação, defendida por ruralistas e setores interessados na exploração das terras tradicionais, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988, ou que, naquela data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.
Na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), essa é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar.
Além disso, essa posição ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos.
Por tudo isso, os povos indígenas vêm dizendo, em manifestações e mobilizações: “Nossa história não começa em 1988”. Célia Xakriabá, na foto abaixo, foi uma das lideranças que se mobilizou nas redes sociais.
Que consequências esse julgamento pode ter para os povos indígenas?
Caso o STF reafirme o caráter originário dos direitos indígenas e, portanto, rechace definitivamente a tese do marco temporal, centenas de conflitos em todo o país terão o caminho aberto para sua solução, assim como dezenas de processos judiciais poderão ser imediatamente resolvidos.
As 310 terras indígenas que estão estagnadas em alguma etapa do processo de demarcação já não teriam, em tese, nenhum impedimento para que seus processos administrativos fossem concluídos.
Por outro lado, caso o STF opte pela tese anti-indígena do marco temporal, acabará por legalizar o esbulho e as violações ocorridas no passado contra os povos originários. Nesse caso, pode-se prever uma enxurrada de outras decisões anulando demarcações, com o consequente surgimento de conflitos em regiões pacificadas e o acirramento dos conflitos em áreas já deflagradas.
Esta decisão poderia incentivar, ainda, um novo processo de invasão e esbulho possessório a terras demarcadas – situação que já está em curso em várias regiões do país, especialmente na Amazônia.
Além disso,há referências de povos indígenas isolados ainda não reconhecidas pelo Estado, ou seja, ainda em estudo – um procedimento demorado, em função da política de não contato. Se o marco temporal de 1988 for aprovado, muitas terras de povos isolados não serão reconhecidas, pois sequer sabemos onde eles estão.
Há outros casos, como o do povo Kawahiva, em que a comprovação da existência desse povo isolado se deu, para o Estado brasileiro, em 1999, ou seja, muito depois de 1988. Como vai ficar a situação desses povos? Ademais, não é possível contatá-los para saber se já estavam lá em 1988.
Os povos indígenas participarão do julgamento?
O relator do caso, ministro Edson Fachin, defendeu a ampla participação de todos os setores interessados no tema, dada a importância da matéria.
Tal participação se dará a partir da figura do amicus curiae – termo em latim que significa amigo da corte e que permite que pessoas, entidades ou órgãos com interesse e conhecimento sobre o tema contribuam subsidiando o tribunal com informações.
Quase 40 amici curiae foram admitidos e estão habilitados a contribuir no processo – entre eles, muitas comunidades e organizações indígenas.
Além disso, a própria comunidade Xokleng também é parte no processo, tendo em vista que é diretamente afetada por ele. Usufruindo do direito de acesso à Justiça que foi assegurado aos povos indígenas pela Constituição de 1988, o povo Xokleng também se manifestará no julgamento.
Foto (destaque): Apib