
Homeira Qaderi é afegã e tem 41 anos. Escritora de ficção, educadora e ativista pelos direitos das mulheres, tem dez livros publicados, o último é o romance Dancing in the Mosque: An Afghan Mother’s Letter to Her Son (Dançando na mesquita, uma carta de uma mãe afegã ao seu filho, em tradução livre), lançado no final do ano passado.
Dias depois que o Talibã tomou Cabul e o poder no Afeganistão, logo que as tropas dos Estados Unidos deixaram o país, ela enviou uma carta para amigos escritores do International Writing Program, importante programa de escrita criativa, de Iowa, Estados Unidos, do qual foi residente em 2015.
Nela, descreve a situação trágica da capital do Afeganistão. Destaca que a guerra contra o terror tornou-se uma guerra por procuração. E relembra que, nos anos 90, o mundo abandonou o país nas mãos do Talibã e só conseguiu enxergar o perigo com os ataques de 11 de setembro.
Por fim, faz um apelo para que os escritores não deixam essa tragédia cair no esquecimento, que não se esqueçam do povo afegão, em especial das mulheres e crianças.
Mas Qaderi não foi a primeira intelectual do país a se manifestar e pedir socorro à consciência mundial.
Cineasta afegã: outro apelo

Pouco antes do Talibã tomar a capital do Afeganistão, a cineasta afegã Sahraa Karimi publicou uma carta aberta dirigida “às comunidades de cinema do mundo e a quem ama filmes e cinema”. Ela pedia apoio ao povo, em especial para “mulheres, crianças, artistas e cineastas afegãos”.
Autora do filme Hava, Maryam, Ayesha, ela é diretora-geral da Afghan Film, única empresa cinematográfica estatal do país, fundada em 1968, e a primeira mulher a ter PHD em cinema no país.
Na carta, Karimi disse estar com “o coração partido e uma profunda esperança de que você possa se juntar a mim na proteção de meu belo povo, especialmente os cineastas do Talibã”. E acrescentou: “É uma crise humanitária, mas o mundo está em silêncio”.
Ela contou sobre o assassinato de mulheres, comediantes e poetas. E que o Talibã baniria toda a arte. “Eu e outros cineastas podemos ser os próximos em sua lista de alvos. Eles vão tirar os direitos das mulheres: seremos empurrados para as sombras de nossas casas e de nossas vozes, e nossa expressão será abafada no silêncio”.
Foi um apelo desesperado. Certamente, se a cineasta tivesse escrito essa carta agora, como fez Qaderi, concordo com o jornalista Carlos Alberto Mattos, que a divulgou traduzida para o português: o teor seria ainda mais dramático. Mas ela sabia que após a invasão de Cabul, todos poderiam ser silenciados, e não arriscou.
A seguir, reproduzo a carta das duas intelectuais afegãs, na íntegra.
A primeira é de Qaderi e foi traduzida pelo escritor Rodrigo Garcia Lopes, que a divulgou em sua página no Facebook, convidando seus amigos a compartilharem. Ele tomou conhecimento da carta por intermédio de Christopher Merrill, poeta e amigo da escritora.
A carta de Karimi foi reproduzida por mim do blog de Mattos, que é crítico de cinema. Seu texto viralizou nas redes sociais quando o Talibã tomou Cabul e reavivou as palavras tocantes da cineasta.
Uma Carta aos Escritores do Mundo
Saudações, amigos,
Meu nome é Homeira Qaderi, sou escritora, e meu livro mais recente é “Dançando na Mesquita: Carta de uma Mãe Afegã ao seu Filho”. Conheci alguns de vocês no International Writing Program de Iowa; outros, conheço pela escrita. Vivo em Cabul nestes dias sangrentos onde, como escritora, mulher e mãe, vejo meu povo ser intimidado pelo Talibã.
Estamos presos numa guerra que nos foi imposta: uma guerra por procuração [proxy war] na Guerra Global contra o Terror, mas também uma guerra por procuração promovida pelos nossos países vizinhos.
Quando o Talibã chegou ao poder, em 1995, o Afeganistão foi devastado pela guerra civil, e depois o espírito do nosso povo foi destruído pelo Talibã, quando impôs leis draconianas e obsoletas.
O mundo continuou indiferente ao nosso destino, achando que ainda se tratava de uma guerra civil. Mas a adesão do Talibã ao terrorismo representava um perigo para o mundo, como os acontecimentos do dia 11 de Setembro deixaram claros.
Quero dizer que a guerra ao terror não pertence apenas aos afegãos. Trata-se de uma guerra que deve ser travada pelo mundo. Se o Afeganistão perder, a segurança do mundo correrá perigo.
Todos têm uma arma nesta guerra. A minha é a caneta. Esta é a caneta com a qual escrevo, para pedir a vocês, escritores do mundo, que sejam a minha caneta.
Nossas crianças desabrigadas hoje dormem em estradas de terra, nossas mulheres dão à luz nas ruas, nossos velhos e velhas não têm como fugir, e morrem nas suas casas ou são assassinados nas ruas, onde se amontoam com milhares de outros refugiados do país.
A catástrofe atingiu seu ápice. Estamos nos aproximando de um final doloroso.
Por favor, falem sobre esta tragédia nas suas redes. Não deixem as mulheres e crianças afegãs a sós. Não se esqueçam desta tragédia humana.
Homeira Qaderi
Cabul, Afeganistão
“Eles vão banir toda a arte”
“A todas as comunidades de cinema do mundo e a quem ama filmes e cinema,
Meu nome é Sahraa Karimi, diretora de cinema e atual diretora-geral da Afghan Film, a única empresa cinematográfica estatal no Afeganistão, fundada em 1968.
Escrevo a vocês com o coração partido e uma profunda esperança de que possa se juntar a mim na proteção de meu belo povo, especialmente os cineastas do Talibã.
Nas últimas semanas, o Talibã conquistou o controle de muitas províncias. Eles massacraram nosso povo, sequestraram muitas crianças, venderam meninas como noivas para seus homens, assassinaram uma mulher por seu traje, torturaram e assassinaram um de nossos amados comediantes, assassinaram um dos nossos poetas e historiadores, assassinaram o chefe da Cultura e dos meios de comunicação do governo, têm assassinado pessoas afiliadas ao governo, enforcaram publicamente alguns dos nossos homens, deslocaram centenas de milhares de famílias.
As famílias seguem acampadas em Cabul após fugirem dessas províncias e estão em condições insalubres. Há saques nos acampamentos, e bebês estão morrendo por não terem leite.
É uma crise humanitária, mas o mundo está em silêncio. Acostumamo-nos a este silêncio, mas sabemos que não é justo. Sabemos que essa decisão de abandonar nosso povo está errada, e que essa retirada precipitada das tropas americanas é uma traição ao nosso povo e a tudo o que fizemos quando os afegãos venceram a Guerra Fria para o Ocidente.
Nosso povo foi esquecido. Agora após vinte anos de ganhos imensos para nosso país, especialmente para nossas gerações mais jovens, tudo pode ser perdido novamente neste abandono.
Precisamos de sua voz. A mídia, os governos e as organizações humanitárias mundiais estão convenientemente em silêncio, como se o tal ‘acordo de paz’ com o Talibã fosse legítimo. Nunca foi legítimo. Reconhecê-lo deu-lhes confiança para voltar ao poder.
O Talibã tem brutalizado nosso povo durante todo o processo das negociações. Tudo o que trabalhei muito para construir como cineasta em meu país corre o risco de acabar.
Se o Talibã assumir o controle, eles vão banir toda a arte. Eu e outros cineastas podemos ser os próximos em sua lista de alvos. Eles vão tirar os direitos das mulheres: seremos empurrados para as sombras de nossas casas e de nossas vozes, e nossa expressão será abafada no silêncio.
Quando o Talibã esteve antes no poder, nenhuma menina frequentava escolas. Desde que o grupo deixara o controle do país, mais de 9 milhões de meninas afegãs se matricularam na escola. Isso é incrível. Herat, a terceira maior cidade que acabou de ser dominada pelo Talibã, tinha quase 50% de mulheres em sua universidade.
São ganhos incríveis que o mundo mal conhece. Nessas poucas semanas, porém, o Talibã destruiu muitas escolas, e dois milhões de meninas foram forçadas a parar de estudar novamente.
Não entendo este mundo. Não entendo o silêncio (do mundo). Vou ficar e lutar pelo meu país, mas não posso fazer isso sozinha. Preciso de aliados como você. Ajude-nos a fazer com que o mundo se preocupe com o que está acontecendo conosco.
Ajude-nos informando aos meios de comunicação mais importantes de seus países o que está acontecendo aqui no Afeganistão. Sejam nossas vozes fora do Afeganistão. Se o Talibã assumir o controle de Cabul, talvez não tenhamos acesso à internet ou a qualquer ferramenta de comunicação.
Por favor, envolva seus cineastas e artistas para nos apoiar e ser nossa voz. Esta guerra não é uma guerra civil. É uma guerra por procuração, é uma guerra imposta. Por favor, compartilhe este fato com sua mídia e escreva sobre nós em suas redes sociais. O mundo não deve virar as costas para nós.
Precisamos do seu apoio e da sua voz em nome das mulheres, crianças, artistas e cineastas afegãos. Esse apoio seria a maior ajuda de que precisamos agora”.
Foto: Divulgação
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