Durante aproximadamente 20 anos, a arquiteta pernambucana Maria das Dores Melo, também conhecida como Dorinha, esteve à frente de organizações não-governamentais que ajudaram a colocar no mapa – literalmente – a Mata Atlântica do Nordeste e evitar que seus remanescentes interioranos desaparecessem de vez. Tanto na Sociedade Nordestina de Ecologia (SNE) como a Associação para a Mata Atlântica do Nordeste (Amane), organização criada por uma aliança de oito importantes ONGs brasileiras que atuam no bioma, ela se dedicou apaixonadamente para conseguir recursos e implementar projetos na região, até comprometer sua saúde.
Com mestrado em florestas urbanas e doutorado em corredores de biodiversidade, Dorinha continua atuando em prol da Mata Atlântica, agora na prefeitura de Recife, onde cuida dos planos de manejo das unidades de conservação municipais.
Segundo ela, continua ambientalista e ativista, pois essa é uma postura de vida. Postura essa contrária ao que se vê hoje como prática no governo federal, com sua demora em agir diante do derramamento de óleo no litoral nordestino. “A grave crise ambiental no Nordeste com o derramamento de óleo na sua costa imprime na região uma visão catastrófica”, disse em entrevista para o Conexão Planeta.
Você dirigiu duas das principais ONGs ambientalistas que atuaram do Nordeste, a SNE e a Amane. Como iniciou esse trabalho?
Passei anos atuando em prefeituras com urbanismo, paisagismo e planejamento ambiental, até ser convidada por amigos para entrar na Sociedade Nordestina de Ecologia, e me apaixonar pela missão e pelo trabalho. Entrei de cabeça e, em poucos meses, era a presidente da instituição.
Levei a SNE para a minha casa, literalmente, até conseguirmos reabrir a sede. Com os Projetos Demonstrativos (conhecidos como PDA), parceria do Ministério do Meio Ambiente com a comunidade internacional, garantimos a sustentabilidade da ONG por 20 anos. Com isso, passamos a ter sementeiras e a fazer restauração florestal.
Entre 1994 e 2004, fizemos o mapeamento da Mata Atlântica no Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, para o Atlas da SOS Mata Atlântica e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o que não existia até então.
Nessa época, a Mata Atlântica no interior do Nordeste estava muito ameaçada, à beira da extinção. O Pacto Murici e a Amane foram fundamentais para reverter esse processo. Qual seu papel nessa história?
No início dos anos 2000, fomos procurados pela BirdLife, aliança mundial de proteção às aves. Queriam uma organização parceira para salvar um desses últimos remanescentes, que era o complexo florestal de Murici, em Alagoas, onde havia várias espécies de aves ameaçadas de extinção.
Fizemos o diagnóstico do local, que era propriedade de uma família de políticos influentes que não queria nem conversar. Promovemos uma articulação diretamente no Ministério do Meio Ambiente e, em menos de um ano, conseguimos a criação da Estação Ecológica Murici. Na época, era a maior unidade de conservação do Nordeste acima do Rio São Francisco. Mas precisávamos implantar e efetivar a reserva. Eu era conselheira do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), e pedi recursos para esse fim.
A situação daquela região era tão grave que uma grande articulação foi formada para viabilizar o projeto e, em maio de 2004, foi assinado o Pacto Murici, uma aliança inédita com a participação de oito das maiores organizações ambientalistas do país: BirdLife/SAVE Brasil, Centro de Estudos e Pesquisas Ambientais do Nordeste, Conservação Internacional (CI), Fundação SOS Mata Atlântica, Instituto Amigos da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, The Nature Conservancy (TNC), SNE e WWF-Brasil.
Para executar as ações previstas no Pacto Murici, as organizações criaram a Associação para a Mata Atlântica do Nordeste (Amane), em setembro de 2005, e fui convidada para ser a diretora executiva, onde fiquei por quase dez anos.
Qual foi a importância da Amane e por que ela acabou?
O projeto foi ampliado para trabalhar com a Mata Atlântica do Nordeste. Nossa estratégia foi atuar também na área da Serra do Urubu, em Pernambuco, outro remanescente de Mata Atlântica importante na região do agreste, onde foi criada uma reserva privada de uma das ONGs do Pacto, a SAVE Brasil. Além disso, trabalhamos com o setor produtivo, nas usinas de cana-de-açúcar, para projetos de adequação ambiental e reflorestamento. Colaboramos para a criação do Corredor de Biodiversidade da Mata Atlântica do Nordeste e fundamos dois centros de educação ambiental, em Murici e em Lagoa dos Gatos, onde fica a Serra do Urubu.
Era muita coisa, mas tínhamos perna para tudo, o conselho era bastante ativo e conseguíamos captar recursos. Com o tempo, porém, a participação da aliança foi diminuindo e tivemos falta de recursos. Boa parte deles eram de editais do governo de Pernambuco, mas o dinheiro não chegava a tempo. Por exemplo, se você faz um viveiro e, na época do plantio, não tem recursos, perde tudo. Além disso, fazer restauração no Nordeste é mais difícil, não tem capacitação e o clima é difícil, pois os períodos de chuva não são certos.
Tudo isso me deixou muito estressada, quase enfartei, com 95% de obstrução coronária. Quando tivemos que fechar os centros, que eram referência para a população, resolvi me afastar. Logo depois, a Amane fechou. Minha tese de doutorado foi justamente um dossiê de tudo o que foi feito no período.
Diante da tragédia do derramamento de óleo nas praias nordestinas, como você vê a relação do governo federal com o meio ambiente e a região, e a participação popular na limpeza das praias?
Hoje, a grave crise ambiental no Nordeste com o derramamento de óleo na sua costa imprime na região uma visão catastrófica. Esse óleo espalhado no litoral atinge a rota das baleias, animais ameaçados de extinção como o peixe-boi e recifes de corais. Ou seja, já impacta de forma irreversível a biodiversidade e a população local: pescadores, empresários, o turismo….
A sensação de que o país está à deriva na sua gestão ambiental é fato aqui, onde um acidente dessas proporções é negligenciado pelo governo federal, apesar de legislação (Lei 9.966/2000) construída pelos cientistas, sociedades e governos. Ela estabelece o que deve ser feito em termos de prevenção, controle e fiscalização de poluição causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sob jurisdição nacional.
Depois de mais de um mês do início do acidente é que o governo federal mobilizou a Polícia Federal e a Marinha na investigação das causas e responsabilidades. As ações de mitigação e prevenção estão sendo realizadas num trabalho de formiguinha, que muitas vezes envolve mais o ativismo do que o cumprimento governamental.
A desestruturação dos órgãos de gestão participativa como o Conselho Nacional de Meio Ambiente e os comitês do Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional (PNC) são fatores de retardamento das ações articuladas, mesmo assim, a sociedade se mobiliza no sentido de agir com as próprias mãos, colocando em risco sua saúde básica.
Como está a situação em Pernambuco?
O governo do estado tem atuado intensamente, mas há muitas limitações, tendo em vista a dimensão do problema e suas causas que extrapolam os limites do estado e do país. São muitas questões a serem consideradas, inclusive o destino final desses resíduos em tempo recorde, o suprimento de equipamentos de proteção para quem está em campo, a forma de participação da sociedade e orientação sobre questões de saúde pública.
Hoje, você não atua mais com organizações não-governamentais. Depois da experiência na Aname, desistiu desse setor?
A experiência com a Amane foi ótima, ainda acho que ONG é o melhor lugar para trabalhar com meio ambiente, mas o envolvimento é muito grande, alia coração e responsabilidade. Hoje, trabalho na prefeitura, no plano de manejo das unidades de conservação de Recife, que cobrem 38% do município. Também dou aula de arquitetura e história da arte em uma universidade e sou consultora para a realização de indicadores socioambientais para usinas hidrelétricas.
Continuo trabalhando pela Mata Atlântica e pelas pessoas. Me vejo como ambientalista e ativista. A luta está no sangue, mas às vezes não temos mais condições de ir para a briga. Na prefeitura, continuo trabalhando pelo bem comum, defendo o que é público. A questão ambiental faz a gente sofrer muito, por isso é importante se refugiar na arte, estudar, dar aulas. Também estou participando de uma ecovila, começando um novo projeto com agrofloresta.
Ativismo pode ser uma postura de viver, de se expressar, essencial mesmo que não seja tão confortável.
Foto: Arquivo Pessoal
Edição: Mônica Nunes