Em seu blog, a internacionalista* Amandinha Costa se descreve como ecofeminista e antirrascista. Leva esses princípios para tudo o que faz. E faz muito.
Aos 24 anos, foi coordenadora dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), na ONG Engajamundo , representou os jovens em conferências internacionais, é mobilizadora do Youth Climate Leaders (YLC), criou o projeto Perifa Sustentável para discutir os ODSs nas comunidades periféricas de São Paulo, e, desde agosto de 2020, é Embaixadora da Juventude da ONU.
Desembaraçada, sorridente e com uma capacidade enorme de cavar oportunidades, Amandinha conta, nesta conversa para o blog Mulheres Ativistas do Conexão Planeta, que as dificuldades que sofreu, mesmo antes de saber que se tratavam de consequências do racismo estrutural, se tornaram motivação para se empenhar mais em tudo o que queria fazer.
Ao tomar consciência, sofreu, mas resolveu transformar seu potencial em realizações que possam fazer do mundo um lugar melhor.
Qual foi o ponto de inflexão que determinou suas escolhas?
Foi o meu reconhecimento como mulher preta e periférica, que aconteceu em duas ocasiões durante o ano de 2019. Tinha entrado no Engajamundo e, com outros jovens, fiz uma imersão para entender a organização, e foi o processo mais disruptivo do qual participei.
Saí dali sabendo que o racismo estrutural me atravessa, algo doloroso para lidar. Também fui convidada a participar do projeto Agile Learning Facilitators (ALF), voltado para a aprendizagem autodirigida, que incluía aquele jogo em que se mede a desigualdade de partida. Fui a penúltima do grupo
(nota da redação: esse jogo é conhecido como Jogo do Privilégio Branco; clique aqui para entender como ele funciona)
Comecei a achar tudo muito injusto. Vi que, para ter a mesma oportunidade de um homem branco, deveria me esforçar muito mais, correr muito rápido. Preferia não olhar para isso, mas é impossível “desver”.
Naquele momento, notei que era a única menina preta na sala de aula na faculdade e que, no trabalho, onde havia mais de 150 pessoas, só havia três negros: eu, um rapaz da área de informática e a mulher do cafezinho.
Até então não havia notado as desigualdades?
Sou da Brasilândia, periferia da Zona Norte da cidade de São Paulo, mas só entendi o que é desigualdade social no meu primeiro dia de aula na faculdade. Até então, não tinha ideia do que era racismo estrutural nem da vantagem social que tive ao estudar em uma escola particular – o Colégio Adventista Vila Nova Cachoeirinha.
Era a única menina preta na sala de aula e sempre fui chamada de estudiosa e esforçada, nunca de inteligente. Acredito que isso me fez ter paixão por estudar e ser uma boa aluna.
Comecei a praticar vôlei e fui a melhor atacante da escola por cinco anos. Entrei na Associação Cristã de Moços (ACM) para me desenvolver no esporte e também comecei a jogar futebol. Acabei sendo indicada para a peneira da Portuguesa e me tornei jogadora federada.
Na época, meu treinador me falou sobre a possibilidade de ir para os Estados Unidos, mas não deu certo. Ficou, porém, uma semente de vontade de ir para o exterior. Quando acabei a escola, fiz cursinho, pois pagam muito pouco para jogadoras mulheres.
Isso foi em 2015, quando surgiu a oportunidade de fazer um intercâmbio para trabalhar como monitora de acampamento de verão da ACM na Califórnia, por três meses. Lá, conheci pessoas de várias partes do mundo e tive certeza que viajar era o que eu queria na vida. Quando voltei, fui fazer Relações Internacionais, na faculdade Anhembi Morumbi, onde consegui uma bolsa de estudos.
Durante a viagem, comprei de presente para minha irmã um pingente para a pulseira que ela havia ganhado do namorado, que foi bem cara. A primeira menina que conheci na faculdade tinha uma pulseira igual, lotada de pingentes, um para cada país que tinha visitado. Foi ali que vi que o que para mim era “uau”, era trivial para os ricos.
Descobri que falar inglês também não era diferencial, pois meus amigos de faculdade falavam também outras línguas.
O que fez a respeito?
Pensei que precisava fazer algo para me destacar e resolvi aprender espanhol. Meus pais são funcionários públicos e disseram que não poderiam pagar. Passei a guardar todos os vales-refeição que recebia da empresa onde era jovem aprendiz para poder viajar. E comecei a levar marmita todos os dias.
Depois de quase um ano e meio, consegui juntar R$ 6 mil e fui, novamente pela ACM, para a Espanha, trabalhar como professora de inglês em um acampamento em Zaragoza. Aprendi espanhol e também fui para Madri, Paris e Amsterdã, sempre na casa – ou até na barraca – de amigos.
Na volta, levei uma lembrancinha para o Paulinho, responsável pelo departamento internacional da ACM, que havia me ajudado. Ele ouviu minhas histórias e disse que poucos se animavam com intercâmbios internacionais.
Então, ele me ofereceu a oportunidade de representar os jovens da ACM na Conferência das Partes do Clima (COP23), em novembro de 2017, em Bonn, na Alemanha.
Disse ao Paulinho que queria muito ir, mas não tinha dinheiro. E logo lembrei o que aprendi com meus amigos norte-americanos: dinheiro a gente não ganha, faz.
Fui para a Rua 25 de Março, comprei bijuterias e vendi. Ganhei a passagem de uma sócia da ACM. Falei com uma professora, chamada Helena, que não sabia nada sobre a Organização das Nações Unidas (ONU) e ela me convidou para ser orientanda dela em uma pesquisa sobre a existência de algum acordo comum sobre clima entre países da América Latina.
Como foi participar tão inexperiente de uma conferência internacional?
Fui para a COP23 com 21 anos, sem dinheiro e no início da minha vida acadêmica. Chegando lá, soube que a delegação brasileira iria se encontrar para se atualizar. Lá, em meio a muitos homens brancos engravatados, vi um pessoal jovem, com roupas coloridas e diferentes. Pensei, quero ser amiga deles, e me apresentei.
Era a delegação do Engajamundo e já me convidaram para que os seguisse, me apresentaram para diplomatas, líderes empresariais e de organizações da sociedade civil. Aí, disseram que iriam falar com o embaixador brasileiro na COP, José Marcondes Carvalho, para questionar algumas coisas. Ele sentou no chão com a gente e explicou, por quase uma hora, o que estava sendo negociado.
Descobri que o Engajamundo é uma organização voltada a empoderar a juventude brasileira para compreender e incidir em espaços de poder, nacional e internacionalmente. Além disso, vi que têm representação de todas as juventudes, em termos sociais, de raça, gênero e de todos os lugares do país. Tudo o que queria era estar junto deles e me inscrevi logo que voltei ao país.
Sua militância começou a partir daí?
Passei a participar de muitas atividades até que me tornei coordenadora do grupo de trabalho dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) do Engaja.
Nessa altura, também estagiava em uma empresa japonesa e fazia faculdade. Foi quando me senti sobrecarregada e fiz as imersões que me mostraram minhas dificuldades estruturais.
Tinha que atravessar a cidade da Vila Brasilândia para a Vila Olímpia, o que significava 2h40 para ir e outro tanto para voltar. Dormia de quatro a cinco horas por noite.
No final de 2018 – ao voltar da COP24, realizada em Katowice, na Polônia, para a qual fui como coordenadora de ODS do Engaja -, falei com meus pais que gostaria de, no último ano de faculdade, me dedicar apenas aos estudos e me tornar referência na minha área de estudo – crise climática, sustentabilidade e negritude – além de fazer trabalhos voluntários.
Eles disseram que garantiriam a condução e a alimentação, e pedi demissão.
Como surgiu o projeto Perifa Sustentável?
Com mais tempo, me inseri em outros espaços. Me inscrevi e passei no processo seletivo do Global Shapers Community (rede de jovens do Fórum Econômico Mundial). Por indicação deles, me inscrevi num edital e fui selecionada para um programa do United People Global, uma comunidade global que tem o propósito de “tornar o mundo um lugar melhor”.
Passei um mês em uma ilha nos Estados Unidos, Hurricane, onde tudo é sustentável, e saí de lá com o propósito de desenvolver um projeto.
Vi que há uma desconexão entre o tema socioambiental e a quebrada, queria democratizar essa pauta. Criei o Perifa Sustentável (a grafia é PerifaSustentavel, tudo junto e sem acento), cuja missão é democratizar a Agenda 2030 (que reúne os 17 ODSs) para as periferias de São Paulo.
Antes da pandemia, ia às comunidades para aplicar oficinas combate em três pilares: discutia com eles o que achavam que era o mundo ideal, depois apresentava a Agenda 2030, como um caminho para se chegar ao mundo ideal. Na terceira parte, discutíamos o que poderíamos fazer na comunidade, um plano de ação, como criar uma horta orgânica, por exemplo.
Mas, com a pandemia, as oficinas têm acontecido em parceria com organizações locais e online. O Perifa é um espaço no qual também compartilho minha experiência para que outras meninas como eu possam chegar onde cheguei.
Além de ser ‘Embaixadora da Juventude’ da ONU, o que mais tem feito?
Quando me formei, queria fazer um trabalho internacional e entrei para uma multinacional indiana. Quando estava tudo certo para a viagem, em março de 2020 recebi um e-mail sobre a Covid-19, cancelando tudo.
Com o sonho adiado, comecei a marcar cafés virtuais com pessoas que admiro e estavam em lugares que gostaria de trabalhar. Em um desses, conversei com a Clarissa Cänova, do Youth Climate Liaders (YCL), que me convidou para ser mobilizadora de redes do YCL, onde trabalho com ações que despertam conscientização climática e coordeno jovens para ação.
Em agosto de 2020, fui escolhida como Embaixadora da Juventude da ONU, que selecionou jovens agentes de transformação para atuarem como multiplicadores dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Também fui convidada para produzir um podcast para o portal Fervura no Clima, chamado Direto na Base. O primeiro episódio vai ao ar em 24 de fevereiro.
De onde você tira energia para fazer tantas atividades?
Vem da minha espiritualidade, sou cristã. O mundo está esquisito para a humanidade. Quando descobrimos nosso papel no mundo, governamos nossa vida e o entorno.
Entendi que posso governar minha área de influência e engajar outras pessoas. Aprendi que o trabalho ativista encanta meu coração e que não faço nada sozinha. Estou sempre perto de pessoas que, de fato, estão agindo.
*internacionalista: designação de quem se forma em Relações Internacionais
Edição: Mônica Nunes
Foto: Rodolfo Bonifácio