Cada pé de cupuaçu que derruba seus frutos carnosos no quintal é um pequeno milagre para dona Francisca Vieira dos Santos. O quintal dela, sem cercas, sem muros, quase sem fim, é a floresta amazônica.
Francisca quase não conhece outro horizonte que não seja mata e rio. Nasceu às margens do Rio Juruá, em Eirunepé, sudoeste do estado do Amazonas. Cresceu embrenhada na floresta, descendente de cearenses que foram para lá trabalhar nos seringais. Aprendeu cedo que é preciso proteger a natureza ao redor, porque dependemos dela para sobreviver.
Francisca prega que não se mata a mãe que garante o sustento dos filhos. E esta mãe oferece delícias das quais ela não abre mão: castanhas frescas, rambotã, cubiu, uxi, e o prato preferido de Francisca, o néctar dos deuses, o suprassumo dos sabores: o açaí.
Aos nove anos viu sua vida mudar. O avô comprara um pedaço de terra na comunidade de São Sebastião, na beira do Rio Cuieiras. Foram 15 dias quentes e 15 noites estreladas de travessia pelos rios caudalosos até chegar a Manaus. Depois, foram mais 15 dias de espera infindável no porto.
Era preciso avisar o avô que a família fora se juntar a ele, mas sem telefone, celular, correio, as notícias na floresta iam também de barco, levadas de boca em boca por vizinhos bem intencionados. Um deles levou ao avô a boa nova e só aí o resgate apareceu para reunir a família.
Em São Sebastião Francisca deixou a meninice, virou moça, mulher, multiplicou-se ao dar a luz 10 filhos, 5 meninas e 5 meninos. Para eles fez de tudo. Para eles era mãe. “Apenas” cuidava da roça, carpindo, plantando e colhendo, lavava, cozinhava, curava machucados, arrumava a casa, ou seja, afazeres de mãe não eram trabalho naqueles rincões!
No dia a dia com as crianças entre o roçado e a mata viu onça, anta, porco-do-mato pelas mesmas trilhas que ela e a prole cortavam. Dava graças sempre por ter filhos de vista boa, que viam as cobras pelo caminho antes de serem picados.
A mãe de Francisca era dada ao protagonismo. Juntou as mulheres da comunidade e as que ainda eram projetos de mulheres também. Debaixo do mesmo teto faziam trabalhos manuais, minuciosos bordados, pinturas, ao mesmo tempo em que falavam das dores e delícias de ser mulher e ribeirinha.
Passaram à frente as receitas de quitutes com ingredientes ofertados pela natureza. Até Francisca aprendeu a dose certa de cada ingrediente no doce de cupuaçu, a porção de cumaru para dar um toque de baunilha silvestre aos biscoitos, o ponto da massa do pão de macaxeira, o corte do tucumã.
Por causa da mãe dela o nome do clube de mães é Maria de Nazaré. Além das mãos habilidosas para a cozinha Francisca herdou da mãe a vocação para não parar de aprender. A vontade mais funda aos 66 anos era sentar no banco da escola.
Queria trilhar os caminhos das letras. Terminou o ensino fundamental aos 71 para começar um novo começo, letrada na cartilha do alfabeto. Pensa agora em ingressar no ensino médio, porque gostou muito de ser aluna. Na cartilha da floresta ela já é professora há muito tempo.
Foto: Adriano Gambarini