Nem dá pra dizer que a notícia é uma surpresa. Falamos sobre o assunto há pouco mais de duas semanas, quando o presidente Jair Bolsonaro disse que “Para integrar o índio à sociedade, não custa nada explorar essas grandes áreas”, conforme mostramos em outro post.
Mas agora é oficial. Foi publicado ontem (01/01), no Diário Oficial, a medida provisória que transfere da Fundação Nacional do Índio (Funai), vinculada ao Ministério da Justiça, para o Ministério da Agricultura, a atribuição de identificar, demarcar e limitar terras indígenas. A demarcação de áreas de quilombolas também deixa de ser gerida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), vinculado à Casa Civil, e também passa para a Agricultura.
E não é só isso. O ministério passa ainda a ser responsável pelo Serviço Florestal Brasileiro, antes a cargo do Ministério do Meio Ambiente. O serviço é responsável por, entre outras funções, tomar medidas para promover a vegetação nativa e recomposição florestal, propor planos de produção sustentável e apoiar processos de concessão florestal.
Em sua conta no Twitter, esta manhã, Jair Bolsonaro explicou sua decisão. “Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros”.
Durante toda a campanha eleitoral, o presidente deixou bem claro que tinha a intenção de rever a demarcação de terras indígenas. Com fortes aliados da bancada ruralista, ele afirmou também que queria enfraquecer os órgãos do governo que trabalham pela proteção do meio ambiente e acabar com o que ele chamou de “fábrica de multas ambientais”. No começo de dezembro, inclusive, Bolsonaro anunciou que não iria mais repassar o valor das multas para as organizações do setor, o que era feito até então.
Com a indicação de Ricardo Salles para o ministério do Meio Ambiente também cumpriu o que prometeu: sem apoio algum de especialistas do setor, o político foi condenado por improbidade administrativa pela justiça de SP, é contra ONGs, a favor do porte de armas e já incitou a violência no campo (leia mais aqui ).
E agora, é extremamente preocupante imaginar que a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, apelidada pelos colegas da bancada ruralista de Musa do Veneno, irá definir o futuro (ou extinção?!) de terras indígenas, quilombolas e leis ambientais de proteção à biodiversidade brasileira.
A bancada ruralista não poderia estar mais feliz…
Em meados de dezembro, Sônia Guajajara, líder da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APBI), fez um alerta para a União Europeia sobre um “novo genocídio indígena”, que aconteceria no Brasil, caso a comunidade europeia não se posicionasse para evitá-lo.
Em entrevista divulgada pelo jornal The Guardian, a indígena brasileira disse que o país precisa receber sanções para prevenir uma tragédia ambiental e “uma exterminação social dos povos indígenas”.
“Não vamos esperar que isso aconteça. Vamos resistir. Vamos lutar, defender nossos territórios e nossa vida”, enfatizou Sônia.
Na época, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil entregou uma carta com reivindicações do movimento indígena a Jair Bolsonaro e sua equipe de transição, em Brasília, em que afirmava que o único ministério com condições de gerir a Funai seria o da Justiça. Mesmo assim, horas depois, foi anunciado que a Funai faria parte do novo ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sob comando de Damares Alves, ex-assessora de Magno Malta.
E agora, chega esta nova e péssima notícia.
Ontem, em sua conta no Twitter, Sônia lamentou a publicação da medida.
O Observatório do Clima, coalizão de organizações da sociedade civil brasileira, divulgou a seguinte nota sobre a medida provisória que dá superpoderes ao Ministério da Agricultura:
“A Medida Provisória 870, sobre reforma administrativa, publicada ontem, no primeiro dia de governo de Jair Bolsonaro, é apenas o primeiro passo formal no cumprimento das promessas de campanha do presidente de desmantelar a governança ambiental, retirar direitos de povos indígenas e abrir as terras dos índios para os negócios.
O ataque à Funai vai além dos sonhos mais loucos da bancada ruralista, que durante anos tentou aprovar a PEC 215, que transferia ao Congresso a prerrogativa presidencial de demarcar terras indígenas. Bolsonaro resolveu a questão ao transferir as demarcações diretamente para os fazendeiros. Nem mesmo a ditadura militar, cujo tratamento dos povos indígenas foi tenebroso, foi tão longe. O movimento tende a ser questionado na Justiça.
Também há sério conflito de interesse em mudar o Serviço Florestal Brasileiro para o Ministério da Agricultura, esvaziando os poderes do Ministério do Meio Ambiente. O Serviço Florestal é o órgão responsável pela implementação do Código Florestal. Com a reforma, o setor regulado passará a tomar conta do órgão regulador. Pode parecer uma esperteza, mas isso vai arruinar completamente a credibilidade do agronegócio brasileiro diante de mercados e de investidores externos”.
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Foto: Renato Soares