Como estamos vendo o mundo? Como estamos vendo as crianças? Aqui, não nos referimos às representações, mas ao olhar físico, direto, biológico, mesmo. Quantas vezes entre nossos olhos e as crianças temos uma tela digital?
Quando todos os telefones móveis passaram a ter câmeras e, por sua vez, as câmeras passaram a ter memória quase que ilimitada, a fotografia ganhou velocidade e acelerou a quantidade de registros produzidos por cada um de nós.
Ter uma câmera sempre à mão nos instiga a querer registrar tudo, a cada segundo. Registrar os outros, registrar a nós mesmos, os espaços, o que comemos, o que fazemos.
Vivemos, então, um tempo em que as memórias dos telefones estão carregadas de gigabytes com nossos melhores momentos. Mas, aqui, cabem algumas questões: como esses melhores momentos estão registrados em nossos corpos? Como esses melhores momentos estão registrados nos corpos das crianças?
A necessidade de registrar cada passo é tamanha, que esquecemos de sentir em nosso corpo cada experiência. Viver esses momentos, sem as telas digitais como intermediárias das sensações e das experiências, permite que construamos um repertório de vida em nosso corpo. São histórias que vivemos, histórias que podemos, depois, contar.
Quando estava nas Escolas da Floresta, na Inglaterra, Ana Carol (uma das autoras deste blog) pensou em registrar muitas de suas vivências com sua câmera. O universo conspirou e, chegando nesse espaço, seu telefone adquiriu “vida própria”, ou seja, funcionava “quando queria”. Ora desligava e depois ligava e permanecia ativo por alguns minutos.
Ana Carol aprendeu com a situação e decidiu que fotografar não era sua prioridade. E resolveu adotar outras formas de registros enquanto esteve por lá: fez um diário escrito, desenhado, mapeado. Tem algumas fotos, sim! Mas tem muito mais histórias para contar, em detalhes.
Além de pensar sob a perspectiva do adulto que registra tudo, o tempo todo, queremos refletir também sobre a criança que é registrada a todo momento. Que tem sua vida super divulgada nas redes sociais.
Uma cena que trazemos, aqui, para esta reflexão foi presenciada por Ana Carol. Aconteceu quando, durante uma vivência com crianças em um parque, ao chegarem ao topo de uma árvore, pararam para posar para uma foto, com um largo sorriso no rosto e imóveis. Interromperam a experiência pra isso! Com um detalhe: não foi uma selfie. Elas pediram para a educadora que as acompanhava registrar o feito com sua câmera. Quando a foto estava sendo feita, uma criança perguntou: “Você vai postar no Facebook, para meu pai ver?”.
E aí nos perguntamos: Quanto e como as crianças se relacionam com essas postagens? Quanto esses registros estão interferindo no seu desenvolvimento durante a infância?
Em vez de brincarem e atingirem seus objetivos num movimento intrínseco, aproveitando o sentimento de conquista e de reconhecimento de um espaço, as crianças estão manifestando que precisam da validação dos adultos e de likes em redes sociais para se sentirem potentes. Por que?
O problema não é o registro, mas como nos relacionamos com ele. Quando fotografar se interpõe e impede ou dificulta a experiência direta e sensível de forma recorrente, perturba o que poderia ser uma rica experiência de autonomia, aprendizado e comunicação direta com os outros seres vivos. Bom refletir a respeito.
Foto: Dariusz Sankowski/Pixabay