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Vera Rocha: “Precisamos lutar para manter o SUS público, gratuito e universal”

SUS; sistema de saúde; público, gratuito e universal; políticas públicas; saúde pública

Profissional de educação física e fisioterapia, a porto-alegrense Vera Rocha é uma das mais atuantes fisioterapeutas do país na defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e da formação de profissionais aptos para atuar no sistema. Sua militância vem do movimento estudantil, nos anos 1980, em Santa Maria, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Esse era o tempo em que as bandeiras nessa área eram o Movimento Antimanicomial e a Reforma Sanitária, que lutava pela criação de um sistema único de saúde para o país.

Ainda em Santa Maria, incentivava os alunos da universidade a frequentarem as comunidades periféricas para entender suas necessidades. Mais tarde, quando se transferiu para a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal, participou de projeto voltado a adaptar os currículos dos profissionais de saúde para atuar no SUS. Esse trabalho a levou a ser convidada, há 11 anos, para voltar a Porto Alegre para criar o curso de fisioterapia da UFRGS, que se tornou um dos mais conceituados do país e que segue a filosofia de prioridade ao atendimento público.

Como reconhecimento pelo seu trabalho, o nome de Vera batiza o Centro Acadêmico de Fisioterapia da UFRN (CAVERA) e o Troféu Vera Rocha, prêmio anual do setor de fisioterapia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e do curso de fisioterapia da UFRGS que reconhece pessoas que se destacam na formação superior na área de saúde.

Atualmente, ainda é uma das organizadoras do programa quinzenal Diálogos Interprofissionais sobre Formação na Saúde no canal da TV Rede Unida no Youtube e participa do projeto Fisioterapia e Negritude, página no Instagram que acompanha as dificuldades e narrativas dos profissionais negros nessa área.

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Qual o maior desafio para o SUS atualmente?

A principal bandeira de luta é manter o SUS, pelo menos neste momento pandêmico, como ele é, com gestão dos governos federal, estadual e municipal e totalmente público, gratuito e universal, nos três níveis de atenção: de básica, média e alta complexidade.  

É preciso respeitar a Lei 8080/90, que regula as ações de saúde em todo território nacional, e a Lei 4192/90, que trata do controle social e do financiamento do SUS. Não podemos abrir mão de nada disso!

Recentemente, o governo federal tentou passar – e depois revogou – um decreto que abria caminho para sua privatização e para continuar a terceirizar a atenção básica, o que é inadmissível.

O SUS é importante por manter 53 mil equipes de saúde da família e seus mais de 270 mil agentes de saúde, que moram no local, conhecem a equipe de saúde e os moradores da comunidade, e estão presentes nos 5.570 municípios e nas comunidades mais remotas. Essa capilaridade se dá porque temos pessoas comprometidas com o cuidado. Quantas amputações, por exemplo, o cuidado de saúde evitou, com menos sofrimento e menos gastos com reabilitação das pessoas diabéticas?

Como começou sua militância na área de saúde?

Estudei educação física e depois fisioterapia, mas nunca abandonei o magistério durante minha formação, tenho DNA de educadora e dei aulas desde os 16 anos. Quando terminei educação física, não havia curso de fisioterapia em Porto Alegre, por isso me mudei para o interior para cursar a Universidade Federal de Santa Maria. Depois, fiz mestrado em desenvolvimento humano, área que me ajudou a compreender as teorias sistêmicas relacionadas a essa área do conhecimento, com estudos dos sistemas ecológicos. A visão sistêmica foi fundamental no meu envolvimento na militância.

A militância aparece de forma mais concreta no encontro com o Movimento Antimanicomial e com o Movimento de Reforma Sanitária, que ocorriam no final de período ditatorial, quando já estava me formando. Era mais velha, pois já tinha feito uma faculdade, e comecei a participar de reuniões. Vi que precisávamos nos engajar para mudar a visão de saúde e do profissional de saúde.

Quais eram as bandeiras naquela época?

O Movimento Antimanicomial se uniu ao da Reforma Sanitária. Ambos lutavam para que tivéssemos uma saúde ao alcance de todas as pessoas e que todos fossem tratados com dignidade e respeito e discutiam ações descentralizadas de saúde com vistas à Constituinte.

Queríamos que houvesse postos de saúde próximos às casas das pessoas, com profissionais capazes e qualificados para suas necessidades. Até hoje, defendo a presença de fisioterapeutas, pois 90% dos que chegam sentem dor e é também do que essa especialidade trata.

Me formei em 1983 e fui secretária do precursor do Conselho Municipal de Saúde em Santa Maria, quando começamos a compreender o que queríamos para o SUS no Brasil, que foi finalmente criado com a Constituição de 1988. Nessa cidade, conseguimos coisas interessantes, como ter fisioterapeutas na prefeitura que faziam atendimento nas escolas, e como campo de estágio em creches.

Quando você começa a lutar pela formação dos profissionais de saúde?

Em 1996, fugindo do frio, prestei concurso em Natal, para a Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Lá, encontrei pessoas que tinham um longo percurso de luta pela saúde pública e generosamente me acolheram e me inseriram num grupo nacional de estudos e práticas de mudanças na formação em saúde.

Fui, então, convidada por um grupo de enfermagem para participar de um projeto de mudança na formação de profissionais de saúde em âmbito nacional. O Projeto UNI era financiado pela Fundação W. K. Kellogg para a América Latina e participaram oito cursos de medicina no Brasil que contavam com formação integrada à comunidade e com a presença de outros cursos afins. A ideia era que as faculdades mudassem seus currículos para ter uma ação voltada para o SUS, pois era (e ainda é) preciso que os profissionais conhecessem o sistema, inclusive na área de gestão.

Entendi que precisava aprofundar mais meus estudos e fiz o doutorado na área da Educação e minha militância amadureceu, com envolvimento em outros movimentos políticos profissionais e da educação superior. Isso culminou no convite para voltar a Porto Alegre para criar o curso de fisioterapia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2009.

O que esse curso tem de inovador?

O curso de fisioterapia é orientado para o Sistema Único de Saúde, com qualidade no atendimento à saúde de forma pública e equânime. Se o aluno entende essa proposta pode trabalhar em qualquer lugar, diferentemente de quem faz uma formação clínica normal.

Sou muito feliz com a trajetória de 11 anos do curso, que está entre os melhores cursos de fisioterapia do país, com notas máximas em todas as avaliações. Hoje, estou aposentada da universidade, mas ainda oriento estudantes para mestrado, doutorado, concursos.

E continua na militância para a formação na área de saúde?

Após compor a Coordenação Nacional da Rede Unida, atualmente colaboro como participante de projetos e iniciativas. Essa Rede é o resultado daquele do Projeto UNI, do qual falei inicialmente, e que continua na busca da articulação entre a universidade, serviços de saúde e comunidade.

Precisamos ter estratégias voltadas para essas questões, pois a formação superior tem se afastado do olhar crítico, de análise da realidade. A universidade se tornou conteudista. Nosso pensamento tem base no pensamento de Paulo Freire, que vê a educação como ferramenta para a construção de uma consciência crítica, com uma formação que permite pensar a vida e como ela traz o adoecimento.

Fale sobre o projeto que contempla ‘fisioterapeutas negros na saúde’

É um projeto que ainda está se construindo. Na verdade, partiu de um questionamento trazido pelo colega que posteriormente criou a página Fisioterapia e Negritude no Instagram. Com este perfil, ele busca reunir fisioterapeutas negros e negras para saber sobre suas narrativas e dificuldades para chegar aos espaços de trabalho, o que requer sempre muita luta.

Sou exemplo do quanto é difícil, tive que trabalhar sempre e nunca apenas estudar. Matamos um leão a cada dia.

Ao nos questionar sobre a relevância da proposta, pensamos o quanto esse tema carece ser tratado, estudado, pesquisado no universo da fisioterapia e, dessa forma, estamos organizando uma pesquisa que logo trará mais visibilidade à questão e certamente nos ajudará a desenhar políticas profissionais apropriadas e antirracistas.

Naturalmente que essa iniciativa é coletiva, como quase toda minha construção: juntos somos mais fortes.

Como você vê o ativismo pela saúde no Brasil?

Na minha infância, éramos atendidos pela Cáritas e outras instituições de caridade, o SUS só surgiu após a Constituição de 1988, mas, como já disse, começou a ser construído antes do final da ditadura.

Essa construção, assim como todos os avanços sociais que conquistamos, foram resultados do trabalho e envolvimento de pessoas que acreditaram, se envolveram e foram para a frente, ou como liderança ou como apoio.

Assim, considero que o ativismo é a “implicação”, é se sentir parte e responsável pelo teu entorno – é pertencimento que compromete e promove avanços sociais.

O momento atual é tão difícil quanto a época em que comecei a militância. O ativismo nos mostra que nada vem de graça e nunca fica pronto. Precisamos olhar a realidade, ver o que precisamos fazer e os erros que não podemos cometer.

O momento é de embate, mas essa luta deve também ser epistêmica. O cuidado com novos inimigos travestidos de progresso e com promessas de mudanças na vida das pessoas têm nos tornado reféns da tecnologia para combater, na atualidade, um novo inimigo: as fake news.

O mundo também se constrói por ideias e, se são falaciosas, o final poderá ser muito triste e difícil de ser revertido. Mas nossa aposta ainda é no humano e por isso precisamos esperançar.

Edição: Mõnica Nunes

Foto: arquivo pessoal

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