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Tocando o vazio

Conhecer a Terra no seu estado selvagem, enquanto ainda podemos chama-la assim, e contribuir para sua conservação, tem sido meu objetivo de vida desde que me entendo por gente. Na minha longa lista de desejos de lugares a se visitar e experiências para viver, “fazer uma alta montanha” (no jargão do montanhismo) sempre foi um sonho distante. Escalar esses gigantes, com mais de 5 mil metros de altitude, exige logística complexa, equipamentos e pessoal especializados, condicionamento físico impecável e bom conhecimento sobre sobrevivência em situações extremas. E foi na minha última expedição aos Andes peruanos, em julho passado, que resolvi tirar os planos do papel.

Após meses de planejamento, negociações com agências de alpinismo e muito treino, finalmente me encontrava na base do Nevado Mateo. Bem em frente, o Huascarán, maior montanha tropical do mundo e segunda maior montanha das Américas, com 6.768 metros. O tempo estava totalmente fechado, e à medida que avançávamos na penosa subida pelo glaciar, o ar se tornava mais rarefeito, a respiração pesada e a visibilidade piorava.

Fomos envoltos numa densa nevasca que não nos permitia ver mais do que 100 metros à frente. Equilibrávamos na íngreme encosta coberta de neve com nossos grampons piolets, torcendo para que uma avalanche qualquer não nos alcançasse. A cada passo, afundávamos até a canela na neve fofa. Um pequeno vacilo já seria suficiente para despencarmos montanha abaixo.

Enquanto eu me preparava para fotografar e procurava ângulos interessantes em meio à imensidão branca, um sentimento inigualável de perplexidade, admiração e encantamento tomou minha cabeça. Era como se estivéssemos entrando em outro mundo.

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Ao meu redor, apenas o branco, o silêncio, o nada. A densa cortina de neve nos cercava por todos os lados, e a orientação espacial começava a perder o sentido. Cima, baixo, leste, oeste agora não significavam muito, tal como para um astronauta flutuando no espaço. Um espaço aflitivamente branco. O impiedoso frio de 10 graus negativos nos congelava até os ossos, e nossa capacidade racional começava a dar sinais de falha.

Em algum momento, lembro-me de perguntar por que diabos estávamos ali. Não seria exagero afirmar que neste dia entendi o verdadeiro significado da palavra sublime. Atingir o cume, com seus 5168 m, ainda que uma experiência memorável, talvez tenha sido banal perto do que vivemos na fatídica subida rumo ao misterioso infinito branco. 

Não por coincidência, alguns meses antes eu assistira a um filme sobre a trágica história de dois escaladores no Peru, intitulado Touching the Void, ou Tocando o Vazio. Neste episódio, os escaladores vivenciam um misto de emoções ao vencer o Siula Grande, outro gigante nos Andes peruanos, com mais de 6300 metros. Depois da experiência da escalada no Nevado Mateo, acredito que nenhum título poderia ser mais apropriado para a situação. 

Nestes momentos, percebemos o quanto nosso planeta pode ser surpreendente e grandioso. O quanto ainda pode ser misterioso, e subitamente nos transportar para outros universos inimagináveis, abalando nossa percepção e nossos sentidos. A experiência da escalada em gelo me marcou como uma cicatriz, e certamente ficará na memória como um pequeno pedaço do infinito, do espaço, do etéreo, do sublime. É exatamente esta cicatriz que tento reconstruir através da minha fotografia

Foi este o dia em que toquei o vazio.

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