
Em 19 de setembro de 1921, nasceu em Recife (PE), o menino Paulo Freire. Criado com mais três irmãos, aprendeu a ler e escrever embaixo do pé de manga com seus pais. Apenas aos 16 anos ingressou na escola e aos 21 já iniciou a docência.
Ao longo de sua trajetória, esse educador, que foi considerado como patrono da educação brasileira em 2012, escreveu dezenas de livros, que foram traduzidos em cerca de 30 países e construiu um grande legado para a educação.
Para quem tem acompanhado o trabalho do programa Criança e Natureza, do Instituto Alana, sabe que há alguns anos nós defendemos a importância do desemparedamento da infância, ideia tão bem traduzida pela professora Léa Tiriba (UNIRIO).
Se Richard Louv, em seu livro A última criança na natureza (2015) nos chamou à atenção para o transtorno de déficit de natureza, Tiriba propôs um caminho e chamou a atenção à necessidade da criança em ter mais experiências ao ar livre e junto à natureza, considerando sua filiação a ela e os benefícios dessa vivência para o seu desenvolvimento integral.
Essa ideia, embora tenha ganhado alguma força nos últimos anos, não é necessariamente nova. Desde o início do século passado, Anísio Teixeira, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro, Paulo Freire, entre outros, já vinham estabelecendo referências brasileiras para uma educação que considerasse no processo de ensino aprendizagem a experiência dos estudantes em todas as dimensões da vida humana: física, social, cultural e emocional, constituindo assim bases para o que se entende hoje como educação integral.
A sabedoria das comunidades tradicionais
Indo um pouco mais longe, uma infância desemparedada é vivida por muitas comunidades tradicionais no Brasil. Indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos e suas crianças têm como base da sua formação a experiência no território que habitam. A prática tem centralidade em toda formação do indivíduo e a relação com a natureza é constitutiva para o repertório de saberes socioambientais e culturais dessas comunidades – saberes esses, inclusive, responsáveis pela conservação do seu meio ambiente.
Paulo Freire também foi fundamental para o desenvolvimento desta ideia.
O educador questionou concepções presentes até a primeira metade do século XX, que consideravam o/a estudante com um receptáculo de conhecimentos a serem transmitidos pela escola, o que ele denominava como educação bancária.
Freire reconhecia e validava os saberes do ser humano em sua experiência no mundo, se referia como “a assunção [de assumir] da identidade cultural” e apontava como o apagamento desses saberes na relação entre opressores e oprimidos era, acima de tudo, uma questão política e, por isso, a educação não poderia ser neutra.
A marca do seu trabalho com a alfabetização de pessoas adultas foi um bom exemplo disso.
Em vez de considerar que os adultos analfabetos (o que era cerca de 40% da população na década de 60[1]), que nunca tinham conseguido terminar os estudos, como pessoas que sabem menos, ele fazia o contrário. Partia dos saberes e da leitura de mundo de cada um deles para fazer processos de alfabetização.
Para alfabetizar, escolhia as palavras do universo de cada um deles: tijolos, cerâmicas, canoa tornando a aquisição da escrita muito mais significativa (também dizem que mais rápida).
Freire dizia que não há docência sem discência: “As duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”[2].
Certamente um dos fatores que favorece o desemparedamento da infância e a constituição de territórios educativos, algo que realmente ajuda educadores e educadoras a irem além dos espaços escolares, é certa convicção de que os estudantes aprendem.
Talvez não aprenda aquilo que o/a educador(a) tinha intenção em certo momento, talvez aprenda o mesmo conteúdo da sala de aula de modo diverso e, quem sabe ainda, aprendam coisas que nunca aprenderiam dentro de quatro paredes.
Agentes de transformação
Saber ver o que aprendemos enquanto ensinamos, é uma das bonitezas da educação, como diria o autor.
Reconhecer que os estudantes aprendem é respeitar sua leitura de mundo, é respeitar os saberes “socialmente construídos na prática comunitária”. Além disso, Freire incentivou que homens e mulheres fossem agentes de transformação de suas histórias e de sua realidade. Ele considerava importante discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação ao ensino dos conteúdos.
“Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes?”[3].
As relações que cada estudante tem com sua realidade e com seu território são matérias-primas para processos educativos. É olhar o mundo e problematizá-lo na busca por sua transformação, para que ele seja mais justo, humano e igualitário para todo mundo.
São muitos anos de um padrão de ensino e aprendizagem que não considerou esse mundo de possibilidades infinitas presentes do lado de fora. Mas, ao mesmo tempo, temos Freire e tantos/as outros/as que nos deixaram um enorme legado inspirador que não está em paredes, carteiras ou grades escolares. Ele está no olhar para o céu, no toque da terra, da água, de um brotinho de feijão ou, logo ali, na sombra de uma mangueira.
[1] Dado consultado em Dados do Analfabetismo no Brasil. Inep, 2016. Acessado em setembro de 2021.
[2] Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 1996, pg.25
[3] Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 1996, pg.33
Foto: Rinaldo Martinucci
Leia também:
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