Faz quase dez dias que cerca de 800 indígenas de 40 povos de todo o país estão acampados em Brasília para exigir medidas efetivas de proteção contra o garimpo ilegal em suas terras e protestar contra projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional – o PL 490/2007 em especial, que impede a demarcação de terras indigenas, liberando-as para exploração de atividades econômicas, e a tese do marco temporal.
“Voltamos a ocupar os gramados da capital federal depois de dois anos sem mobilizações presenciais, sobretudo o Acampamento Terra Livre, maior assembleia dos povos indígenas do Brasil, que, devido à pandemia de Covid-19 foi realizado virtualmente em 2020 e 2021″, ressalta a Apib – Articulação dos Povos Indigenas do Brasil.
Esta mobilização potente ganhou o nome de ACAMPAMENTO LEVANTE PELA TERRA e também reivindica ao STF a retomada do julgamento que pode definir o futuro de seus territórios, mas foi suspenso a pedido do ministro Alexandre Moraes, em 11/6.
(o grupo precisa de apoio financeiro, de alimentos e materiais de proteção contra covid-19, como já contei aqui; e quem puder doar dinheiro, clique neste link)
Eles têm circulado todos os dias pelas avenidas largas da cidade em marchas, protestos e caminhadas que, algumas vezes, terminam em audiências no Congresso Nacional, STF ou algum ministerio, como aconteceu com o da Justiça. E têm sido bem recebidos com respeito por representantes de todos que procuram – entregando cartas, fazendo protestos ou participando de audiências.
No entanto, quando procuraram pelo presidente da Funai – Fundação Nacional do Índio, a recepção foi diferente. No edifício onde fica o órgão criado em 1967 para proteger os indígenas, eles foram recebidos por uma barreira policial intimidadora, composta também pela Tropa de Choque. E depois com spray de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral.
Um lobista na Funai
Como fazem quando participam de festas, celebrações ou mobilizações, os indígenas chegaram à Funai paramentados e pintados, cantando, entoando frases ou gritos, e empunhando bastões, arcos e flechas.
Queriam entrar no edifício – afinal, lá fica o órgão que os representa, a priori. E queriam conversar com seu presidente: o ex-delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier que, desde que assumiu o cargo em julho de 2019, parece ser pautado por uma agenda anti-indígena.
Na segunda-feira, 15/6, por exemplo, ele esteve em reunião com a deputada federal Bia Kicis, presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), onde o fatídico PL 490/2007 será votado a qualquer momento. E entregou-lhe “subsídios” para garantir a aprovação Bia publicou sobre o encontro em seu Twitter e a Apib corrigiu o texto (imagem abaixo), dizendo: “Corrigindo o post da capitã da boiada bolsonarista no Congresso…”.
(ontem, esse PL era o primeiro da lista, mas a pedido de alguns deputados, entre eles Joenia Wapichana, coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos Indígenas, foi tirado de análise por duas sessões).
Tem sido assim, principalmente desde que Bolsonaro assumiu o governo: parlamentares decidem o destino desses povos, sem sua participação, sem consultá-los, sem seu consentimento, favorecendo outros interesses.
Cantos e danças indígenas assustam
Uma comissão formada por sete mulheres – indicadas pelas lideranças -, entre elas Alessandra Korap Munduruku e a jovem cacica Juma Xipaya, tentou entrar no edifício e foi barrada. O máximo que conseguiu foi falar com um interlocutor – que Juma chamou de “secretário de segurança” – que disse que, depois da bagunça que fizeram, o presidente não as receberia.
Também disse que ali é proibido usar caixa de som e cantar alto porque eles entendem “como uma ameaça”. “Tanto que, quando os parentes começaram a cantar um pouco mais alto, os policiais levantaram os escudos”, contou Juma. “É nossa voz, nosso canto, o sagrado, nossa proteção e presidente nenhum pode tirar esse nosso direito!”.
O tal “secretário de segurança” ainda contou que tinha uma reunião marcada com uma comissão dos Munduruku para hoje, 17/6. E que ele poderia receber uma outra comissão de indígenas – formada por alguns dos que ali estavam – na companhia de um ouvidor, no mesmo horário. Dependendo dessa conversa, o presidente da Funai talvez os recebesse. Sem garantia.
E ameaçou-as dizendo que, se não se retirassem dali, as reuniões poderiam ser canceladas. Intimidadas, elas saíram. Tristes.
“Você não é mais presidente da Funai”
Horas depois, lideranças da Apib – Kretã Kaingang, Dinamam Tuxá, Sonia Guajajara, entre outras – deram entrevista coletiva à imprensa na qual declararam que não autorizavam mais a permanência de Xavier na direção da Funai.
Em carta pública, divulgada no site da Apib, o Acampamento Levante pela Terra declara:
“Trata-se da pior gestão da história da Fundação, que deixou de cumprir a função de proteger e promover os direitos dos povos indígenas para negociar nossas vidas e instrumentalizá-la em prol de interesses escusos e particulares do agronegócio, da garimpo ilegal e de outras tantas ameaças que colocam em risco a nossa existência”.
“Um delegado que transformou a Funai na “Fundação Nacional da INTIMIDAÇÃO do Índio”, órgão que, hoje, mais se parece com uma delegacia política que persegue e criminaliza lideranças. Edita atos administrativos anti-indígenas, como a Instrução Normativa nº 09 e outras, negocia medidas no Congresso Nacional, a exemplo do lobby que ele apresentou aos inimigos dos povos indígenas na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, pedindo – pasmem! – a aprovação do PL 490″.
Nas redes sociais, um cartaz declara, desde ontem, no inicio da noite, a “demissão” de Xavier pelos indígenas – “Você não é mais presidente da Funai!” -, corroborando com o título e o final da carta da Apib: “Chega de tantos absurdos! Fora Marcelo Xavier!”.
Em nota à imprensa, Funai comenta sobre duas reuniões nos dias 17 e 18 com os indigenas, que foram desmarcadas. “Diante do clima hostil e agressivo do protesto, as duas reuniões previamente agendadas com os indígenas foram provisoriamente suspensas, até que se possa garantir a segurança do patrimônio e de servidores da Funai que trabalham no edifício, o qual abriga também outras instituições…”.
Os indígenas permaneceram em frente à Funai, até tarde da noite. Com seus cantos, seus ritos, suas rezas (fotos abaixo).
Se você quiser sentir o clima em frente à Funai, assista a este vídeo, no Instagram da Apib. Neste outro, policial explica para uma manifestante porque eles estão reprimindo a manifestação, e ela argumenta lindamente.
Foto (destaque): Mídia Ninja