Lembro vivamente de quando descobri que São Paulo, megalópole, a ‘cidade que não dorme’, guarda, em suas franjas no extremo sul, muita Mata Atlântica. Onde vivem grandes mamíferos como onças pardas, antas, bugios e toda uma riqueza de fauna e flora que eu pensava impossíveis quando olhava para o céu na grande cidade.
Mas, além da riqueza da Mata Atlântica e dos únicos cursos de água limpos da capital paulista, inseridos numa Área de Proteção Ambiental, me deparei com um grande grupo de agricultoras e agricultores familiares ao alcance da cidade, produzindo hortaliças, verduras e plantas ornamentais numa espécie de cinturão verde.
Com uma intensidade menor do que a que gostaria hoje, acompanhei a conversão de uma pequena parte desses agricultores e agricultoras à produção orgânica e a sua organização em uma cooperativa, a Cooperapas, que passou a reunir produtores da região. Hoje, já são dezenas de integrantes.
Todo esse universo se revelou para mim no período em que atuei na Secretaria do Verde e do Meio Ambiente da Prefeitura. Depois, passei um tempo mais apartada dessa riqueza toda, até que tive oportunidade de estar mais perto novamente em 2018, com o projeto Ligue os Pontos. Eu e a jornalista Mariana Belmont – que “esticou as pontes” com os agricultores e agricultoras no território onde ela nasceu e cresceu -, nos envolvemos no início desse projeto. Muitas conversas com lideranças nas mais diversas áreas, e também um bom tempo circulando por lá.
Tempo para acompanhar as colheitas, ouvir as histórias dos antepassados, encher olhos, ouvidos e paladar com cores, aromas e sabores. De ser grata à hospitalidade, acolhimento e generosidade com que, entre tantos afazeres diários, pacientemente eles nos davam senhas, pistas e narrativas para entendermos um pouco mais daquele universo. Um trabalho meio jornalístico, meio antropológico.
Nessas andanças, não conseguimos, claro, ter uma ideia clara da totalidade e do perfil desses agricultores e agricultoras, mas entendemos ao menos tipologias, relações, dificuldades e aprendizados. Entender esse perfil só seria possível com um mapeamento no território. O último, realizado pela Prefeitura, se não estou equivocada, datava de 2009, e passado tanto tempo ainda era a base de informações vigente.
Pois o Ligue os Pontos acaba de divulgar o perfil desse universo em um novo levantamento.
Quem são os agricultores da zona sul de São Paulo?
O levantamento, que é um cadastro de UPAs (Unidades de Produção Agrícola), foi realizado pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e, até abril de 2020, identificou 428 UPAs, nas quais trabalham 520 agricultores.
Do total da zona rural demarcada no município, 80% está situada no extremo sul, entre as represas Billings e Guarapiranga, e nas encostas da Serra do Mar. A área está inserida nos distritos de Grajaú, Parelheiros e Marsilac.
Pra se ter ideia desse universo, basta olhar o mapa abaixo, que demonstra a localização da área rural na capital paulista, demarcada em marrom.
O levantamento revelou que a grande maioria dos agricultores e agricultoras da região (80%) cultiva a terra em pequenas propriedades, de até 20 hectares. Cerca de 61,7% deles afirmam comercializar a produção ou parte dela, e 38,3% produzem para autoconsumo. Apenas 20,5% declaram ter rendimento superior a R$ 3 mil.
As mulheres compõem 30% da unidade produtiva. Cerca de 40% dos agricultores e agricultoras tem entre 45 e 59 anos, e 33% mais de 60 anos. Os que têm menos de 44 anos representam apenas 27% do total, o que demonstra um processo de envelhecimento e levanta questões ligadas à gestão futura dessas unidades de produção agrícola.
A produção orgânica na região é ainda reduzida. Só 8,4% afirma ter algum tipo de certificação. Mas 39% demonstraram interesse em conhecer melhor e adotar práticas agroecológicas de produção, o que indica potencial de mudanças no cultivo na região.
O lado (um pouco) invisível da agricultura
“O estudo é bastante revelador porque mostra uma face um pouco invisível da questão da agricultura na cidade. Hoje já é mais sabido que Parelheiros tem uma produção agrícola, mas, mesmo o último Censo Agropecuário do IBGE apontou, na cidade inteira, 550 agricultores, com um número bem menor do que o que a gente conseguiu levantar no sul. Acho que uma das coisas mais interessantes que esse levantamento aponta é essa característica de agricultura familiar, e muito das percepções desses produtores”, avalia a geóloga e integrante do Projeto Ligue os Pontos, Patrícia Marra Sepe.
“Aplicamos algumas perguntas qualitativas, e uma coisa que captamos é que, com todas as dificuldades, 60% dos agricultores ainda gostariam que os filhos ficassem na propriedade. E a gente sabe que a questão do cenário rural no Brasil, principalmente do rural próximo a grandes metrópoles, tem um problema muito grave de sucessão, os jovens não querem mais ficar na região”, diz ela.
Patrícia aponta ainda que, enquanto a agricultura convencional parece estabilizada, a produção orgânica e agroecológica tem avançado: “Durante a pandemia da Covid-19, muita gente tem comprado alimentos orgânicos diretamente dos produtores da zona sul, por meio de cestas. Organizações também procuram esses agricultores para a montagem de cestas a serem distribuídas para populações vulneráveis“.
O levantamento traz muitas outras informações fundamentais para guiar políticas públicas, como avançar na transição da agricultura convencional para a agroecológica ou promover a adoção de práticas mais sustentáveis, buscar mecanismos e ferramentas que atraiam as gerações mais jovens a permanecer na região, fornecer insumos e subsídios que auxiliem agricultores e agricultoras, promover ampliação e abertura de novos mercados, entre muitos outros pontos.
Foto: Mariana Belmont