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Em carta, mulheres Yanomami fazem apelo ao presidente Lula pela retirada dos garimpeiros de seu território

Por Elaíze Farias*

Desnutrição, mortes de crianças, contaminação dos rios, doenças, aliciamento de jovens e estupros são algumas das graves violações causadas pelo garimpo ilegal que mulheres Yanomami relatam em uma forte e impactante carta divulgada ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, ontem, 12 de novembro, dia da diplomação do novo mandatário do país.

As mulheres Yanomami esperam que Lula cumpra a promessa de combater o garimpo ilegal em terras indígenas.

A carta foi escrita durante o 13º Encontro de Mulheres Yanomami, realizado de 22 a 26 de novembro, na região da Missão Catrimani, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, com a presença de 49 mulheres de 15 comunidades.

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O documento foi enviado a alguns veículos de imprensa pela Hutukara Associação Yanomami (HAY), entre eles a Amazônia Real. Uma cópia também foi enviada ao Grupo de Trabalho (GT) dos Povos Indígenas, que integra o Gabinete de Transição de governo (o nome inicial era GT dos Povos Originários, mas foi trocado a pedido dos indígenas que participam do grupo).

“Lula, nós mulheres Yanomami queremos enviar nossa palavra até você. Você está muito longe da Terra Indígena Yanomami, mas sabemos que você vai receber nossas palavras e que quer nos escutar. Queremos que você saiba que estamos com medo e muito preocupadas. Hoje, a floresta está doente. Quando nossa floresta está doente, todos nós ficamos doentes”, inicia a carta (leia na íntegra, aqui, ou no final deste texto).

As mulheres Yanomami descrevem que a floresta “está cheia de buracos” e que tem muitos garimpeiros no território. Antes da chegada dos invasores, a água era limpa, mas hoje ela está “suja e os rios amarelos”.

“Nossas crianças já estão sofrendo os impactos do que está acontecendo agora. Lula, os olhos dos peixes estão mudando. Parecem que os olhos estão soltos e até os animais estão diferentes, parecem magros e doentes. Estamos com medo de comer os peixes doentes. Estamos com medo de que nossas crianças fiquem deficientes”, dizem as mulheres.

Luiz Inácio Lula da Silva vai assumir o cargo com a promessa de combater o garimpo em terras indígenas e o retorno das demarcações. Em visita realizada em Manaus, durante campanha eleitoral, no final de agosto, ele declarou que “não haverá mais garimpo ilegal” e nem mercúrio nas terras indígenas.

“Tenho dito que não haverá mais garimpo ilegal. Não haverá mais mercúrio. Conheço bem o rio Tapajós [no Pará], está banhado de mercúrio. A gente não pode acreditar que o ser humano seja tão insensível, que não percebeu o mal que está causando para o mundo”, disse Lula.

Lula com Sonia Guajajara e outras lideranças, em abril deste ano, no Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília / Foto: Kamikia Kisedje

“Hoje sabemos da importância de cuidarmos da nossa floresta, da nossa água e do nosso meio ambiente. Mas vocês sabem que precisamos cuidar sobretudo do nosso povo. O nosso povo está passando por necessidades e nós não podemos permitir que não viva dignamente”, declarou.

Em outro evento, ocorrido em junho, ele já havia destacado que iria combater o garimpo.

“É preciso ter a pressão da sociedade para que a gente possa ter coragem de enfrentar nossos algozes e fazer o que tem que ser feito. Nesse negócio não tem meio termo. Tem que ter coragem de dizer que não haverá garimpo em terra indígena nesse país. As terras que forem demarcadas como área de proteção ambiental terão que ser respeitadas, não haverá concessão”, acrescentou.

Desde que foi eleito, Luiz Inácio Lula da Silva ainda não fez comentários de como será a política indigenista de seu governo e também não fez declarações sobre a atividade de garimpo.

Sua equipe de governo, responsável pela transição, criou diversos GTs, entre eles um apenas para discutir a agenda dos povos indígenas, na qual um dos temais centrais é justamente o garimpo. Um dos integrantes é Davi Kopenawa Yanomami, líder indígena e presidente da Hutukara.

A deputada federal eleita Juliana Cardoso (PT-SP), indígena do povo Terena que também integra o GT de Povos Indígenasdisse em entrevista à Amazõnia Real que o garimpo é considerado um dos assuntos mais urgentes nas discussões.

“Os indígenas são brutalmente atacados por garimpos. Há uma imensa violência a mulheres e meninas, que sofrem constantes estupros, principalmente as Yanomami. Os povos isolados e de recente contato são cada vez mais ameaçados. Houve desestruturação do Estado, de tudo o que se tinha para a proteção das florestas e das pessoas”. 

Crise humanitária

A carta das mulheres Yanomami é encaminhada a Lula dias após a divulgação de uma fotografia de uma mulher extremamente desnutrida, numa imagem representativa da gravidade crônica dos indígenas deste povo.

A foto mostra uma mulher da aldeia Kataroa, da região de Surucucu, uma das mais afetadas pelo garimpo. Ela foi registrada no mês de novembro, por funcionários de saúde, e divulgada pela Urihi Associação Yanomami (leia: Imagens recentes confirmam crise humanitária vivida pelos Yanomami devido ao garimpo e à falta de assistência de saúde).

Mulher Yanomami em situação de extrema desnutrição. A indígena vive na aldeia Kataroa, da região de Surucucu, uma das mais afetadas pelo garimpo ilegal de ouro / Foto: Reprodução/Urihi

Junior Hekurari Yanomami, presidente da Urihi, disse à Amazônia Real que existem 113 comunidades próximas a atividade de garimpo que estão com os problemas mais sérios.

“Contaminaram água, derrubaram a floresta, fizeram muitos buracos ao redor da comunidade. Principalmente na região da Serra, em Sururucu”.

Segundo Júnior, hoje, está “tudo descontrolado” na Terra Indígena Yanomami, com doenças como, malária, febre e diarreia generalizadas.

“Estamos sofrendo muito, cansados de chorar, cansados de ser maltratados. Queremos viver em paz. Reorganizar nossas comunidades. Esses traumas que tivemos… Perdemos muitas crianças, mulheres, de malária por falta de socorro. A gente quer o presidente Lula faça o seu papel, o seu dever de cuidar dos povos indígenas. Isso que a gente quer para viver e cuidar de nossos filhos, garantir o futuro das crianças”, declarou o líder.
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Não é a primeira vez que as mulheres Yanomami se pronunciam e denunciam os danos provocados pela injustiça ambiental e social agravada pelo garimpo.

Durante o II Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, realizado em 2021, os indígenas afirmaram que muitos deles estavam “morrendo de doenças simples”, por falta de atendimento, e crianças estavam nascendo com má formação.

“Eu só quero que olhem para a gente como ser humano, como mulheres que não merecem todo dia estar enterrando seus filhos”, disse Neila Paliwithele, moradora de Palimiu, na ocasião (leia a reportagem da Amazônia Real).

Aliciamento e assédio

De acordo com a carta das mulheres Yanomami à Lula, a presença dos garimpeiros aumentou os casos de malária, desnutrição, pneumonia e infestação de vermes.

“Quando o garimpo está próximo, nós mulheres ficamos muito preocupadas e andamos com muito medo. Os garimpeiros nos ameaçam e nós não queremos viver assim, queremos viver em paz. Garimpeiros assediam as meninas e outros querem pagar serviços maritais. Eles querem fazer assim, mas nós mulheres não queremos que nossas filhas e netas sejam entregues e abusadas por essas pessoas”, destaca um dos trechos.

O documento também diz que o atendimento à saúde não funciona, porque a presença dos garimpeiros levou a afastamento de equipes de saúde do território.

“Há muitos postos de saúde na Terra Indígena Yanomami que estão fechados. Há milhares de Yanomami que estão sem nenhum atendimento à saúde. Estamos vivendo um verdadeiro caos sanitário”.

As mulheres também afirmam que estão felizes com a eleição de Lula porque que ele vai saber escutar os pedidos.

“Queremos viver na floresta viva e bonita. Nós yanomami queremos viver novamente na terra sadia, que é a verdadeira terra-floresta Yanomami. Nós queremos que nossas crianças continuem nascendo bem e fortes. Precisamos de sua ajuda para curar a floresta e também os animais que lá vivem. Queremos continuar vivendo na nossa terra, comer alimentação saudável e beber água limpa”, finalizam.

O garimpo ilegal afeta há décadas a TI Yanomami, mas, nos últimos anos, houve um recrudescimento sem precedentes nas comunidades, representando uma grave ameaça à saúde e a sobrevivência dos indígenas.

O governo de Jair Bolsonaro permitiu o avanço da atividade, com o agravante da chegada de facções criminosas ao território, levando terror e violência a esse povo.

Em maio deste ano, os Yanomami divulgaram um relatório alarmante da situação causada pelo aumento do garimpo: contaminação do solo e dos rios, aumento de casos de malária, assédios e violência. Além disso, muitas comunidades afirmam estarem reféns dos garimpeiros, que proibem a presença de profissionais de saúde nas aldeias.

Carta ao Presidente Eleito, na íntegra

Comunidade Rokoari, Terra Indígena Yanomami
26 de novembro de 2022

“Lula, nós mulheres Yanomami queremos enviar nossa palavra até você. Você está muito longe da Terra Indígena Yanomami, mas sabemos que você vai receber nossas palavras e que quer nos escutar. Queremos que você saiba que estamos com medo e muito preocupadas. Hoje a floresta está doente. Quando nossa floresta está doente, todos nós ficamos doentes.

A floresta está cheia de buracos. Tem muitos garimpeiros na nossa terra. Antigamente tinha água limpa, hoje está muito suja, os rios estão amarelos e já faz tempo que está assim. Estamos com muito medo do que pode acontecer, pois nossa terra está ruim. A nossa roça não está crescendo bem. Nossas crianças já estão sofrendo os impactos do que está acontecendo agora.

Lula, os olhos dos peixes estão mudando. Parecem que os olhos estão soltos e até os animais estão diferentes, parecem magros e doentes. Estamos com medo de comer os peixes doentes. Estamos com medo de que nossas crianças fiquem deficientes.

Os rastros de garimpeiros fazem crescer a malária. Antes, quando não tinha tantos garimpeiros, as doenças eram poucas. Em algumas regiões do território Yanomami, nossas crianças estão morrendo por malária, desnutrição, pneumonia e até por infestação de vermes.

Quando o garimpo está próximo, nós mulheres ficamos muito preocupadas e andamos com muito medo. Os garimpeiros nos ameaçam e nós não queremos viver assim, queremos viver em paz. Garimpeiros assediam as meninas e outros querem pagar serviços maritais. Eles querem fazer assim, mas nós mulheres não queremos que nossas filhas e netas sejam entregues e abusadas por essas pessoas. Os garimpeiros aliciam os jovens e suas esposas. Esses jovens são atraídos e ficam dependentes dos poucos alimentos industrializados que recebem como pagamento.

O atendimento à saúde Yanomami não está funcionamento bem. A presença do garimpo causa conflitos que leva à retirada das equipes de saúde de área. Há hoje muitos postos de saúde na Terra Indígena Yanomami que estão fechados. Há milhares de Yanomami que estão sem nenhum atendimento à saúde. Naqueles postos que ainda estão

funcionando, não há medicamentos, falta bote e motor. As equipes não têm como fazer o atendimento básico e muitas comunidades não recebem visitas das equipes de saúde. Estamos vivendo um verdadeiro caos sanitário. Quando vamos ao posto de saúde, os funcionários nos dizem: “não há remédios, não há nada que possamos fazer, nós pedimos os remédios, mas eles não chegam”.

Tem muitos casos de malária, os casos de malária explodiram em todo território, essa malária é muito forte e não tem medicamentos para trata-la. O governo de Bolsonaro acabou com estoque de cloroquina do Brasil e agora nós sofremos pela sua má gestão. Não queremos ficar chorando porque as pessoas morrem, não queremos ficar chorando até a madrugada. Já temos muitas cinzas mortuárias.

Muitas escolas que tinha na nossa terra foram fechadas e não funcionam mais. As crianças e os jovens não estão estudando. Estamos pensando nos nossos filhos que precisam aprender a ler e escrever. Se não tem escola, não ficamos bem, não conseguimos acompanhar nem proteger nossos direitos.

A Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) não está funcionando bem, as crianças saem para o Hospital da Criança e quando voltam para CASAI ficam doentes novamente. Voltam com outras doenças, até pegam malária lá. Quando estamos doentes somos transferidos para tratamento de saúde na cidade e ficamos por muitos meses lá e em condições muito ruins. Lá demoram muito para nos dar alta, não facilitam o nosso retorno para comunidade e acabamos ficando doentes novamente.

A CASAI está muito suja, tem esgoto que corre a céu aberto. Por isso nós Yanomami não saramos e ficamos doentes reincidentemente.

Lula, estamos felizes de saber que você vai ser nosso presidente, que vai saber nos escutar e contar com nossa participação no seu governo. Agora que você foi eleito novamente nós mulheres yanomami vamos te dizer o que queremos.

Queremos viver na floresta viva e bonita. Nós yanomami queremos viver novamente na terra sadia, que é a verdadeira terra-floresta Yanomami. Nós queremos que nossas crianças continuem nascendo bem e fortes. Precisamos de sua ajuda para curar a floresta e também os animais que lá vivem. Queremos continuar vivendo na nossa terra, comer alimentação saudável e beber água limpa.

Tire os que estão invadindo a Terra Yanomami. Faça as operações para tirar os garimpeiros e suas maquinas. As poucas operações só retiram as pessoas e deixam as máquinas na floresta, isso facilita que os invasores retornem e reativem aqueles locais de exploração. Tem que fechar o caminho de entrada deles. Tem que fiscalizar os caminhos, bloquear os rios e pistas de pouso que eles usam para chegar até a nossa terra. Tem que fazer cumprir a lei. Nossa terra é demarcada e o garimpo nas Terras Indígenas é ilegal.

Coloque na Sesai e no DSEIY pessoas que tenham compromisso com nosso povo, que conhecem os problemas e que sejam profissionais de saúde para saber cuidar bem da saúde dos Yanomami, que visitem as comunidades que não tem posto. Os medicamentos estão faltando. Estes precisam ser entregues urgentemente.

Tem que fazer uma nova CASAI com condições de nos atender dignamente. As pessoas que estão
à frente da saúde atualmente são indicações políticas, não conhecem a saúde indígena, não se preocupam conosco e por isso estamos sofrendo. O coordenador do DSEI deve ser uma pessoa capacitada tecnicamente e sensível à realidade Yanomami.

Queremos que nossos jovens possam estudar na nossa terra e na nossa língua. Por isso, queremos escola indígena no nosso território e formação de qualidade para professores indígenas e agentes indígenas de saúde (AIS).

Nós queremos viver segundo os nossos próprios projetos. Nós queremos poder acompanhar os cuidados do nosso território. Nossos projetos não causam destruição e respeitam o nosso conhecimento da floresta. Nós fizemos o nosso Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), e queremos que você apoie na implementação. Temos nossas regras e protocolo de consulta e queremos que você respeite e faça ser respeitado.

Estamos muitos felizes que você foi eleito. Nós mulheres Yanomami confiamos que você trabalhará para que nossas crianças vivam com saúde na nossa terra-floresta“.
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* Este texto foi publicado originalmente no site Amazônia Real em 12/12/2022 e adaptado por Mônica Nunes para publicação, aqui, no Conexão Planeta.

Foto (destaque): Juruna Yanomami/ Hutukara Associação Yanomami (HAY)

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