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Carmem Lúcia pede que “não se faça silêncio” diante da violência dos garimpeiros que estupraram menina Yanomami até a morte

Texto publicado às 00h54 e atualizado às 12h01 com informações sobre a situação da aldeia, identificada com o sobrevoo da Polícia Federal e de Júnior Hekurari Yanomami, líder da aldeia, que denunciou o crime
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Ontem, 28/4, antes que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, desse início a mais uma sessão do julgamento do Pacote Verde (7 ações ambientais), a ministra Carmem Lúcia pediu a palavra para comentar o caso da menina yanomami, de 12 anos raptada por garimpeiros e estuprada até a morte, na última segunda-feira, 25/4.

Comentou a barbárie, fez um paralelo com a violência cometida contra as mulheres e o feminicídio no país – “a média de 4 mulheres mortas a cada dia, como se divulgou neste mês de março” – e pediu que a sociedade, as instituições e os agentes públicos parem de se omitir e tomem providências.

“A minha palavra, hoje, é no sentido de que não se continue a fazer silêncio quanto ao direito constitucional à vida, de que é titular todo ser humano. E que, no caso de mulheres e no caso que se denuncia, reitero, e que precisa ficar esclarecido (…), relativamente a uma menina indígena acho que esse direito à vida está sendo rigorosa e escancaradamente descumprido pela violência praticada à vista de todos, incluídos as instituições e os agentes públicos”, declarou a ministra.

“A minha palavra é apenas para que não se faça silêncio sobre a violência que vem num crescente em relação às mulheres e em relação às indígenas de uma forma muito especial”. 

Carmem Lúcia também deixou claro que a pauta ambiental (foco do julgamento em questão) está intimamente conectada com a social, à garantia dos direitos humanos.

“Minha palavra é porque desde 30 de março estamos aqui cuidando exatamente de circunstâncias que se referem a um espaço geográfico brasileiro mais especifico que é a Amazônia”, destacou, deixando claro que a pauta ambiental está totalmente conectada com a social, com a garantia dos direitos humanos”

Foi trazido nos votos até aqui proferidos, incluído o voto proferido na ADPF 760, que os crimes que se tem não são apenas de milicias ambientais, portanto, em relação as matas, mas também em relação aos indígenas, as terras indígenas, a garimpagem criminosa, a grilagem de terras…”.

Mais adiante, reproduzo o pronunciamento contundente de Carmem Lúcia, na íntegra. A seguir, falo do garimpo na região, do crime e de novas revelações que podem (devem?) mudar o rumo das investigações.

O garimpo em Aracaçá

A menina Yanomami vivia na aldeia Aracaçá, na região de Waikás, uma das mais atingidas pelo garimpo ilegal e rodeada por acampamentos, localizada na Terra Indígena Yanomami, em Roraima.

Comunidade Yanomami de Aracaçá, em Roraima, onde a menina, sua tia e uma criança foram raptadas pelos garimpeiros / Foto: Hutukara Associação Yanomami

A comunidade era composta por cerca de 30 integrantes, que pertencem ao subgrupo dos Yanomami Sanöma, que deixaram de plantar com constância e faziam serviços para os garimpeiros – como carregar combustível e fazer pequenos fretes de canoa – em troca de comida.

Por tudo isso, a aldeia Aracaçá já estava condenada e corria o risco de desaparecer como aponta o relatório Yanomami sob Ataque, lançado pela Associação Hutukara (Hay) em março, que denuncia o crescimento das invasões, além de ataques sexuais contra meninas e mulheres na TI Yanomami (contamos aqui).

Na quarta-feira, a Hay divulgou nota assinada por Dario Kopenawa Yanomami, seu vice-presidente, para comunicar que está acompanhando o caso e exigia que os invasores fossem retirados do território

Fiz estes relatos com os verbos no passado porque a aldeia não existe mais e as diligências realizadas pela Polícia Federal, ontem, podem mudar o rumo das investigações, de acordo com revelações que Júnior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Yek’wana (Condisi-YY) fez à Mídia Ninja.

Foi Júnior quem denunciou o crime em suas redes sociais e para diversos órgãos na segunda à noite.

Aldeia queimada e investigações

Depois da ‘visita’ ao local do crime, a PF divulgou nota assinada em conjunto com Funai e Sesai na qual declarou, apenas, que fez diligências na comunidade Aracaçá e não encontrou indícios do estupro e da morte da menina – nem da criança que pode ter se afogado -, mas que prosseguirá com as investigações.

Júnior acompanhou a PF e, a princípio, declarou que o órgão omitiu informações importantes, que precisam ser investigadas a fundo.

“No sobrevoo, vimos que a comunidade estava queimada. Segundo relatos, viviam lá, cerca de 24 Yanomami, mas não havia mais ninguém. Em todos os meus 35 anos, nunca vi isso. Um Yanomami não abandona sua casa, a menos que seja uma situação muito grave. Quem queimou? Por que queimou? Para onde eles foram?”. 

Ele contou que a aeronave da FAB – Força Aérea Brasileira pousou em um ponto de garimpeiros, do outro lado do rio Uraricoera, onde fica(va) a aldeia Aracaçá, e que um grupo formado por três adultos e três adolescentes indígenas Yanomami, visivelmente nervosos, os recebeu sem dizer muito.

Certamente cooptados pelos garimpeiros, que não se encontravam no local, “eles pareciam tentar atrapalhar as investigações”. Devem ter sido orientados a fornecer informações falsas. “Nenhum deles soube informar para onde tinham ido os moradores da comunidade”.

Junior aproveitou para fazer perguntas sobre outros crimes cometidos pelos garimpeiros contra a comunidade. Quis saber do paradeiro de uma mulher que engravidou de um garimpeiro e, depois de um mês do nascimento, teve a criança roubada: “ele a levou para Boa Vista”, revela a reportagem. Desesperada, ela se matou. Mas els apenas disseram que isso aconteceu há um ou dois meses e que não tinham noção do tempo.

Quando Júnior perguntou sobre outra indígena, chamada Maria, eles comentaram que ela foi estuprada e morta por garimpeiros venezuelanos, que “haviam ido embora”. Foi então que ele comentou sobre a menina de 12 anos, morta esta semana. “A gente não sabe, a gente não pode falar”, disseram.

O presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Yek’wana contou à Mídia Ninja que pretende divulgar uma nota pública hoje. E também pedir a ajuda de antropólogos, além de acionar a associação Hutukara. “Vou mostrar um lugar em que acho que o corpo (da menina) foi queimado naquele local”. Queimar o corpo faz parte dos rituais fúnebres da etnia.

E contou: “A PF colheu provas muito importantes e vai continuar a investigação. Os policiais queimaram a barraca dos garimpeiros e também encontraram documentos que eles deixaram no caminho, como se tivessem saído às pressas”.

Júnior acredita que os moradores da comunidade podem estar escondidos na mata, com medo. “Precisamos procurar essas pessoas!”. Ou que possam ter ido embora, com medo. E ainda revelou um dado terrível: inicialmente, a comunidade Aracaçá era formada por 45 pessoas, mas, com a aproximação dos garimpeiros, “muitas vidas se perderam”. 

E ainda destacou um conflito entre garimpeiros e indígenas que ocorreu, também, esta semana, na comunidade de Xitei, quando dois invasores foram mortos. E que as denúncias que ele tem feito têm incomodado os garimpeiros, que, em áudios, já estão “declarando guerra contra mim”.

(em outubro de 2021, Xitei e Homoxi eram apontadas pela Hay como regiões onde o garimpo avançava violentamente, registrando “aumento de 1000% entre dezembro de 2000 e setembro de 2021”)

Em nota, o Ministério Público Federal confirmou que a PF colheu relatos de indígenas da comunidade, “mas que as diligências demonstraram a necessidade de aprofundamento da investigação, para melhor esclarecimento dos fatos”. E que somente depois da conclusão dos trabalhos, “analisará as medidas cabíveis”.

Crianças vítimas do garimpo desde 2021

Vale lembrar que a comunidade de Aracaçá ficava próxima à região de Palimiu, onde, em maio de 2021, garimpeiros armados atiraram em mulheres e crianças indígenas que brincavam à beira do rio. Todos correrem para se refugiar na mata, mas duas crianças – de 1 e 5 anos – desapareceram. Dois dias depois, foram encontradas boiando no rio (como contamos aqui).

Em outubro, dois meninos Yanomami – da comunidade Makuxi Yano – morreram por conta do garimpo, quando brincavam no rio Parima. Eles foram “sugados e cuspidos por uma draga” – que integra o maquinário dos garimpeiros – “e levados pela correnteza”.

Isso depois da decisão do STF, de junho de 2021, que determinava “a proteção dos povos Yanomami e Munduruku e a retirada urgente de invasores de suas terras” (como contamos aqui).

TI Yanomami, a 3ª mais invadida pelo garimpo

Terra Indígena Yanomami é a maior do país e sofre com invasões de garimpeiros desde os anos 70. Em 1992, foi homologada – faz 30 anos! -, mas, nem assim, esse crime nunca parou. Só cresceu e explodiu com Bolsonaro, que destruiu os órgãos de fiscalização – que inibiam ações mais robustas -, abrindo caminho para organizações criminosas. 

Foto: Bruno Kelly/Hutakara Associação Yanomami (HAY)

Na verdade, explodiu em todas as terras que têm ouro, devido ao aumento do preço do minério no mercado internacional.

No ranking das TIs com maior área de garimpo, a dos Yanomami está em terceiro lugar (414 hectares), a dos Munduruku em segundo (1.592 hectares) e a dos Kayapó em primeiro (7.602 hectares). 

O crime

Na segunda, os garimpeiros aproveitaram a ausência da maioria dos indígenas na aldeia, que saíram para caçar, para atacar uma mulher, a menina de 12 anos e uma criança de quatro anos, levando-as para o acampamento, onde aconteceu o estupro. Num dos momentos em que a tia da menina tentou impedi-los, foi agredida e a criança jogada ao rio. Seu corpo não foi encontrado.  

A notícia do crime se espalhou com o vídeo de Júnior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Yek’wana (Condisi-YY) divulgado em suas redes sociais. 

“Eles chegaram de surpresa, só estavam as três. O restante da comunidade estava no mato, trabalhando na roça e caçando. Elas estavam sozinhas e os garimpeiros se aproveitaram”, declarou Junior à Agência Amazônia Real

Nesse dia, ele disse que também enviou ofício para o Dsei – Distrito de Saúde Indígena, a Sesai – Secretaria Especial de Saúde Indígena, a Funai – Fundação Nacional do Índio, a Polícia Federal e ao procurador da República, Alisson Marugal. 

No mesmo dia, de acordo com a Amazônia Real, a Funai respondeu com nota genérica, comentando suas atividades na Terra Indígena Yanomami e que está acompanhando o caso da menina “por meio da sua unidade descentralizada na região, em articulação com as forças de segurança, e está à disposição para colaborar com os trabalhos de proteção à comunidade”.

Difícil imaginar que um órgão presidido por um ex-policial federal, que serve aos ruralistas e a Bolsonaro, possa se preocupar com invasões e combater casos de violência contra os indígenas.

Já o MPF, em Roraima, declarou que “já acionou a Justiça e se reúne rotineiramente com instituições envolvidas na proteção do território indígena para que se concretizem medidas de combate sistêmico ao garimpo”. Entre elas, estariam “a retomada de operações de fiscalização, construção de bases de proteção etnoambiental e mudanças nos procedimentos adotados por órgãos fiscalizadores”. 

A palavra de Carmem Lúcia 

“Peço a palavra para tratar de um fato que foi amplamente noticiado, mas que precisa ser apurado e diz respeito à circunstância de que uma menina de 12 anos, indígena, teria sido estuprada até a morte em ataque de garimpeiros na comunidade de Aracaçara, região de Vaicaz, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima”.

Foto: Carlos Moura/SCO/STF

O fato teria ocorrido dia 25. Desde o dia 30 de marco nos estamos julgando, não só no Supremo, mas juízes do Brasil inteiro, questões graves como esta. Poderia parecer que, hoje, dia 28, teriam se passado três dias do fato que precisa ser esclarecido. 

Ocorre que a violência e a barbárie praticada contra os indígenas está ocorrendo há mais de 500 anos. Não diferente da violência que vem ocorrendo especialmente contra as mulheres, no Brasil, de uma forma cada vez mais crescente. Parece que a civilização tem significado apenas para um grupo de homens. 

O Poder Judiciário atua mediante provocaçãoO cidadão atua pela dor. Dor como a provocada que poderia ser em qualquer parte do planeta, numa crueldade letal contra as mulheres. 

Esta perversidade, sr. Presidente, senhores ministros, e a minha palavra é porque esse caso não pode permanecer como estatística, como notícia, como se fossem fatos normais da vida. Não são. 

Nem podem permanecer como noticias que se formalizam em intermináveis processos que nunca esclarecem nem punem os autores das barbáries praticadas. 

O feminicídio no Brasil vem mostrando a média de 4 mulheres mortas a cada dia, como se divulgou neste mês de março. As mulheres indígenas são massacradas sem que a sociedade e o Estado tomem as providéncias eficientes para que chegue a era dos direitos humanos para todos e não como privilégio de parte da sociedade.

Não é mais pensável qualquer espécie de parcimônia, tolerância, atraso ou omissão em relação a prática de crimes tão cruéis e gravíssimos. 

A notícia que tenho e a Procuradoria Geral da República talvez possa depois nos dizer, já teria adotado providências em relação ao que se passou para esclarecimento dos fatos noticiados nesta comunidade de Aracaçara, Mas há de se adotar providências claras, seguras, continuadas para, não apenas para que este caso noticiado se esclareça e em que condições, mas para que se processem os termos dos direitos humanos. 

Parece imprescindível que todos os casos de feminicídio e que todas as crueldades praticadas sejam superadas com a informação de toda a sociedade sobre os dados e sobre as medidas adotadas com transparência em relação ao ocorrido e às providencias levadas a efeito para que se supere esse estado de coisas para que se supere a ideia contra a própria ideia de civilização e especialmente sobre a eficácia dos direitos que nós conquistamos ao longo destes 2022 anos. 

Acho que não é mais possível calar por se omitir diante do descalabro de desumanidades  criminosamente impostos às mulheres brasileiras, entre as quais mais ainda as indígenas, em situação de enorme vulnerabilidade, que estão sendo mortas pela ferocidade desumana e incontida de alguns.

Minha palavra é porque desde 30 de marco estamos aqui cuidando exatamente de circunstâncias que se referem a um espaço geográfico brasileiro mais especifico que é a Amazônia. Foi trazido nos votos até aqui proferidos, incluído o voto proferido na ADPF 760, que os crimes que se tem não são apenas de milicias ambientais, portanto, em relação as matas, mas em relação aos indígenas, as terras indígenas, a garimpagem criminosa, a grilagem de terras…

E, portanto, a minha palavra hoje é no sentido de que não se continue a fazer silêncio quanto ao direito constitucional à vida, de que é titular todo ser humano. E que, no caso de mulheres e no caso que se denuncia, reitero, e que precisa ficar esclarecido, com as consequências a que se chegue a partir da conclusão, relativamente a uma menina indígena acho que esse direito à vida está sendo rigorosa e escancaradamente descumprido pela violência praticada a vista de todos, incluídos as instituições e os agentes públicos. 

Portanto, a minha palavra é apenas para que não se faça silêncio sobre a violência que vem num crescente em relação às mulheres e em relação às indígenas de uma forma muito especial”. 

Após o pronunciamento de Carmam Lúcia, o ministro Luiz Fux, presidente do STF, e Lindôra Maria Araújo, vice-procuradora geral da República, lamentaram o ocorrido e concordaram com a ministra. 

Fux informou que o STF e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estão apurando o caso, enquanto Lindôra disse que o Ministério Público Federal está apurando os casos de violência contra indígenas, especialmente em Roraima.

Foto montagem (destaque): Carlos Moura/STF (Carmem Lúcia) e Divulgação da HItakara Associação Yanomami (aldeia Aracaçá)

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