
Por Oswaldo Braga de Souza*
Na noite de ontem, 24/05, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP/AL), comunicou que pretende votar o Projeto de Lei (PL) 490/2007, na próxima terça-feira, 30/5. A informação foi dada logo após a aprovação do regime de urgência para a proposta, por 324 votos contra 131 e uma abstenção. O resultado pode ser considerado uma prévia para a possível votação da semana que vem.
Na prática, o projeto inviabiliza as demarcações e libera o garimpo nas Terras Indígenas (TIs), entre outros pontos considerados retrocessos graves aos direitos dos povos originários pelo movimento indígena e a sociedade civil. Se aprovado, ele será encaminhado para o Senado para análise.
A tese ruralista do marco temporal
A votação do projeto poderá acontecer uma semana antes do julgamento do “marco temporal” para a oficialização dos territórios indígenas no Supremo Tribunal Federal (STF), marcado para 7 de junho. O PL 490 institucionaliza a tese ruralista que busca restringir os direitos das comunidades sobre suas terras.
De acordo com a interpretação, essas populações só teriam direito à demarcação dos territórios que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, teriam de comprovar a existência de disputa judicial ou conflito pela área na mesma data.
A tese legaliza e legitima as violências a que os povos originários foram submetidos, em especial durante a Ditadura Militar. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, eles eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para entrar na Justiça em defesa de seus direitos.
Decisão unilateral
Sob críticas de parlamentares de esquerda, Lira tomou as decisões de votar a urgência e o projeto de forma unilateral, em articulação com parlamentares ruralistas, bolsonaristas e do “Centrão”, mas sem passar pelo colégio de líderes, onde esse tipo de deliberação deve ser discutida.
O deputado habituou-se à manobra desde o início de sua presidência, em 2021, apesar de ter prometido que não haveria “pautas surpresas” em sua gestão, em entrevista ao site do ISA, em fevereiro daquele ano.
O parlamentar já tinha admitido a intenção de pautar a proposta o quanto antes para tentar impedir o STF de decidir sobre o assunto antes da Câmara, embora ela ainda tenha de ser apreciada pelo Senado e não haja sinalização explícita de que isso irá acontecer antes do julgamento de 7/6.
O presidente da Câmara alegou que o PL 490 já passou por outras comissões e está pronto para ser analisado no plenário. O projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em maio de 2021.
“Não falem em açodamento, apressamento, falta de combinação, porque a urgência não era regimentalmente necessária. O que estamos fazendo é para deixar claro que esse projeto precisa ser discutido no plenário desta casa para evitar que o Supremo Tribunal Federal o decida, dizendo que não temos a capacidade de fazê-lo há 30 anos”, afirmou o presidente da Câmara.
“Lira afronta os outros poderes e busca intimidar o STF, imitando as crises institucionais forjadas por Bolsonaro, ao colocar o PL 490 na pauta. A questão é constitucional, será judicializada e só irá gerar mais violência e insegurança jurídica, criando falsas expectativas de anulação das demarcações”, alerta Juliana de Paula Batista, advogada do ISA.
“Precisamos lembrar que as Terras Indígenas são as áreas mais ambientalmente conservadas do país. Qualquer retrocesso nas demarcações provocará desmatamentos sem precedentes e consequências climáticas adversas em nível continental. O governo precisa reagir e trabalhar contra o texto. Não dá pra aceitar uma política de direitos humanos e climática pra inglês ver”, completa.
Governo libera bancada
Chamou a atenção o fato de o governo liberar a votação da urgência em sua orientação de voto. O líder Josué Guimarães (PT/CE) deixou o plenário pouco antes da votação.
Acabou pesando a possibilidade de contrariar a maior parte dos partidos que se dizem governistas, o que poderia expor ainda mais a dificuldade do Planalto de formar uma base parlamentar coesa. Só os partidos mais à esquerda orientaram contra: PT, PV, PCdoB, PSOL, Rede, PDT e PSB (veja orientação de partidos e votos de deputados; os principais problemas do PL estão apontados no final do post).
Apesar disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva repete, desde a campanha eleitoral, que quer priorizar a oficialização e a proteção dos territórios indígenas. No final de abril, em Brasília, no Acampamento Terra Livre (ATL), a maior mobilização indígena do país, chegou a prometer acabar com as pendências de demarcação até o fim de sua gestão.
Genocídio legislado
“Quem quer roubar nossos territórios tem nome e gabinete: foram os 262 que assinaram esse requerimento de urgência. As pessoas que votarem a favor do PL 490 são os novos ‘Cabrais’ do século 21, vestidos de gravata e paletó”, criticou a deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG), presidente da Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos Indígenas e da Comissão dos Povos Originários e Amazônia (assista ao seu pronunciamento, no final deste post).
“Quem usa a caneta para assassinar direitos na verdade só sofisticaram as armas, mas a intenção de matar, não!”, acrescentou a deputada, que chamou o PL 490 de “genocídio legislado”.
A parlamentar fez a afirmação ao deixar o plenário, logo após um breve bate-boca entre deputados de esquerda e ruralistas iniciado após Juliana Cardoso (PT-SP), que também é indígena, gritar “assassinos” para os apoiadores do projeto.
Célia Xakriabá requereu que o projeto fosse analisado na Comissão dos Povos Originários e Amazônia, por ela presidida e recém-criada. Lira chegou a dizer que distribuiria o PL para a Comissão, mas ao fim da votação informou que ele seguiria para o Plenário da Câmara dos Deputados.
A aprovação da urgência do PL 490 aconteceu no mesmo dia em que o relatório da Medida Provisória 1.150/2023 foi aprovado, com apoio do governo, na comissão mista que o analisa. O parecer esvazia as competências dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos indígenas (contamos aqui).
A pasta dos Povos Indígenas, comandada pela ministra Sonia Guajajara (PSOL/SP), perde a competência das demarcações das TIs para o Ministério da Justiça, meio-termo encontrado pelo relator, Isnaldo Bulhões (MDB/AL).
Garimpo
O PL 490 também autoriza o garimpo nas TIs, atividade responsável por uma série de impactos negativos sobre os povos originários, como a disseminação de doenças, a contaminação por mercúrio, aumento de conflitos e violências, exploração e abuso sexuais.
A invasão garimpeira é a principal razão da crise humanitária vivida pela Terra Indígena Yanomami, a maior do país. Nos últimos quatro anos, pelo menos 570 crianças morreram por desnutrição e doenças respiratórias, entre outros problemas causados pelos invasores, segundo a agência Sumaúma. Desde janeiro, o governo Lula decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional na área.
Quais os principais problemas do PL 490?
– Permite a retomada de “reservas indígenas” pela União a partir de critérios subjetivos;
– Aplica o “marco temporal” a todas as demarcações de Terras Indígenas, praticamente inviabilizando um processo que já é demorado;
– Estabelece que a demarcação poderá ser contestada em todas as fases do processo, inviabilizando a finalização do processo administrativo;
– Permite a implantação de hidrelétricas, garimpo, estradas, arrendamentos e grandes empreendimentos agropecuários nas TIs, entre outros;
– Dispensa atividades altamente impactantes da realização de consulta livre prévia e informada às comunidades afetadas, conforme determina a Constituição e a legislação internacional- Viabiliza a legalização automática de garimpos ilegais nas TIs. Hoje, a atividade é um dos principais responsáveis por conflitos, disseminação de doenças, destruição de nascentes e rios e a explosão do desmatamento- Abre brecha para o fim da política de “não contato” com indígenas isolados. De acordo com o PL, o contato poderia ser feito com a finalidade de “interesse público”, por empresas públicas ou privadas, inclusive associações de missionários.
A seguir, ouça a declaração completa da deputada federal Célia Xakriabá, logo após a aprovação do regime de urgência para a votação do PL 490:
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Leia também:
– Marco temporal fere direitos indígenas e prejudica o Brasil
– Fachin rejeita ‘marco temporal’ em voto histórico a favor dos direitos indígenas no STF
* Este texto foi publicado originalmente no site do Instituto Socioambiental, em 25/5/2023
Fotos: Lula Marques/Agência Brasil (atrás de Arthur Lira, está a deputada federal Célia Xakriabá)