Em meados de 2011, uma pequena jaguatirica revolucionou os registros de vida selvagem do Instituto Últimos Refúgios. Este ano, exatamente dez anos depois, a mesma espécie protagonizou outro grande marco para a história da ONG, resultado de uma década de muito trabalho, histórias e experiências na Mata Atlântica capixaba.
Tudo começou quando o renomado fotógrafo Sebastião Salgado descobriu uma jaguatirica nos arredores de sua propriedade no Instituto Terra, em Aimorés (MG). A descoberta chegou até mim justamente pelo convite de Salgado, que me ofereceu a desafiadora missão de registrar o felino em seu habitat.
Não hesitei em aceitar a proposta, mesmo imaginando as dificuldades que enfrentaria para produzir esse tipo de fotografia. Afinal, a tecnologia ainda era limitada e pouco acessível na época, e nós, fotógrafos de natureza, estávamos sempre em busca de “gambiarras” para inovar e facilitar nosso trabalho.
No caso da jaguatirica, a grande questão era desenvolver um método discreto e seguro para fotografar o animal sem assustá-lo. Foram muitos testes e tentativas frustradas até a construção de um sistema rudimentar e improvisado, mas, de certa forma, eficiente. O equipamento nada mais era que uma câmera comum fixada em um local estratégico da mata, camuflada em meio às folhagens e cercada por câmeras de vigilância, que serviam para monitorarmos o exterior do esconderijo.
Ficamos à espreita a cerca de 200 metros do “estúdio” improvisado, apenas esperando – e torcendo – para que a jaguatirica retornasse ao local que vínhamos monitorando com armadilhas fotográficas de menor resolução. Depois da montagem da parafernália, essa foi a segunda maior dificuldade da operação: esperar por horas a fio, no calor do dia e no frio da noite, em barracas no meio da floresta.
A jornada foi longa, mas, certo dia, fomos finalmente recompensados pela aparição do felino. Vibramos como nunca. O momento fez toda a espera valer a pena.
A fotografia estampou diversos produtos do Instituto Terra, e foi um grande orgulho entregá-la ao Sebastião Salgado, fotógrafo que sempre considerei como grande inspiração. Missão cumprida!
Mal sabia eu que, anos depois, aquele equipamento rudimentar se tornaria uma das minhas principais ferramentas de trabalho. Continuamos o desenvolvimento da PFN – abreviação para ‘Parafernália Fotográfica Noturna’, como foi carinhosamente batizada – em outros projetos do instituto, como o livro da Reserva de Duas Bocas e da Reserva Biológica de Sooretama, mas os defeitos recorrentes e as grandes limitações tecnológicas – por falta de orçamento – sempre eram motivo de frustração.
Foi só em 2019, com o livro “Últimos Refúgios: Da Pedra Azul ao Forno Grande”, contemplado pela Lei de Incentivo à Cultura Federal, que tivemos recursos suficientes para investir no equipamento. Conseguimos comprar novos sensores, flashes e baterias, além de aprimorar toda a parte eletrônica e elétrica, com ajuda de parceiros e colaboradores (obrigado Joarley e Fabrício). A armadilha fotográfica deixou de ser uma mera gambiarra para se tornar uma peça tecnológica. E pasmem… que funcionava (na maioria das vezes)!
Instalamos a PFN nos Parques de Pedra Azul, Forno Grande e na Reserva Ambiental Águia Branca, contemplando diferentes áreas do corredor ecológico que corta a região. Foi a primeira vez que realmente vimos o equipamento funcionar da forma que sempre idealizamos. Claro, ainda com algumas limitações, mas com o saldo mais positivo de todos os nossos trabalhos de campo.
E quem diria que uma jaguatirica seria uma das primeiras espécies a estrear a nova versão do equipamento? O felino visitou o primeiro local escolhido para instalação da armadilha fotográfica, uma das trilhas escondidas da Reserva Águia Branca, em Vargem Alta. A descoberta do registro foi embaixo de chuva forte, mas não atrapalhou em nada a comemoração. Afinal, quem trabalha com fotografia de natureza já está acostumado com os “perrengues” da atividade. Celebramos nossa primeira conquista até aquele momento. Um verdadeiro alívio para mim e toda a equipe do projeto.
Depois da euforia, analisamos a foto com cuidado. Um detalhe que nos chamou atenção foram os espinhos de ouriço-cacheiro espetados no peito do animal. Ficamos apenas especulando: o que será que aconteceu? Será que o felino conseguiu predar o bichinho? O ouriço venceu a batalha e conseguiu escapar? A natureza é viva, cheia de enigmas, e só revela aquilo que quer. Qualquer que seja a resposta, jamais saberemos. O mistério perpetuará para sempre em nossa imaginação. E acho isso bem divertido.
O flagrante feito em 2011 a pedido de Sebastião Salgado
*Texto escrito a duas mãos: Leonardo Merçon e Ana Mardegan