O município de São Paulo, surpreendentemente, tem cerca de 30% de seu território com características rurais. Essa região, localizada no extremo sul, concentra remanescentes de Mata Atlântica, agricultura familiar e aldeias da etnia Guarani, localizadas na Terra Indígena Tenondé Porã.
Não canso de me surpreender a cada vez que me aventuro por lá, o que não faço há bastante tempo por causa da pandemia. Lá é, também, umas das regiões que mais sofrem a pressão da urbanização de São Paulo, resgistrando desmatamento e atividades de grilagem, cujo incremento foi recentemente denunciado.
Uma das possíveis ações de combate a essa prática criminosa é incentivar agricultoras e agricultores a se manterem produtivos na região, conservando suas terras. E, nessa frente, o projeto Ligue os Pontos, desenvolvido pela Prefeitura de São Paulo por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano com apoio da Bloomberg Philanthropies, tem avançado. O projeto foi vencedor do principal prêmio do concurso Mayors Challenge 2016 (gestão Haddad), promovido pela Bloomberg Philanthropies.
O Ligue os Pontos (do qual participei em seus primórdios, em levantamentos de campo) atua na zona rural da cidade, buscando apoiar agricultores na adoção de práticas mais sustentáveis. E nesse tempo, realizou um primeiro levantamento, divulgado em 2019, no qual mapeou 428 unidades de produção agrícola na zona sul – 171 em Parelheiros, 169 no Grajaú e 88 em Marsilac.
Esse mapeamento se transformou em um estudo mais amplo, visando orientar o planejamento de políticas públicas voltadas à região, sobre o qual escrevi aqui, no Conexão Planeta.
Agora, o Ligue os Pontos realizou um levantamento voltado a identificar e conhecer os agricultores e a produção agrícola em seis aldeias guarani da Terra Indígena Tenondé Porã: Kalipety, Krukutu, Tape Mirĩ, Tekoa Porã, Tenondé Porã e Yrexakã.
O estudo Os agricultores guarani e a atual produção agrícola na Terra Indígena Tenondé Porã – Município de São Paulo foi executado pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI), com participação ativa dos guarani, e, além de subsidiar políticas públicas específicas para aquele território, busca dar visibilidade às práticas tradicionais de cultivo que têm sido resgatadas nas aldeias.
Esse material, inédito, lindo e surpreendente me encanta. Estive presente no primeiro encontro de apresentação do projeto Ligue os Pontos aos guarani da Tenondé Porã, ocasião em que ouvimos muitas lideranças sobre o resgate dessas práticas tradicionais e, também, sobre muitos outros projetos desenvolvidos por eles no território.
Uma riqueza cultural e agrobiodiversa imensa já se manifstava ali, naquele momento, nas vozes e narrativas dos guarani, e que, agora, ganha caráter mais ‘formal’ com esse levantamento, o que lhe confere força para embasar políticas públicas para o território.
Dados que surpreendem
O levantamento foi realizado a partir de encontros com os guarani e da aplicação de questionários digitais. Ao todo, foram identificadas 29 unidades produtivas e 81 roças no território, o que dá cerca de 5 hectares de áreas plantadas.
Aqui vai uma distinção importante feita pelo estudo: o conceito unidade produtiva foi adaptado à realidade guarani, e significa ‘viver e plantar juntos’ ou ‘produzir juntos por meio de um território comum’.
A roça, por outro lado, integra a unidade produtiva mas apresenta características próprias de manejo, cultivo e cuidado com o solo.
O cultivo da terra é destacado pelos guarani como principal garantia de sustento, embora a comercialização dessa produção seja pouco presente no território. Na cultura guarani, a venda de alguns produtos considerados sagrados é proibida, como no caso do milho. E também os alimentos são compartilhados em processos coletivos. A cultura mais presente é a banana, e foi estimada em cerca de 16 toneladas anuais a produção de milho e mandioca.
Ali, estão envolvidas com plantio nas unidades produtivas 123 pessoas, das quais 40% são mulheres. São maioria as pessoas atuantes no campo cuja faixa etária se concentra entre 21 e 59 anos.
A colheita mostra-se uma atividade importante para os guarani, em especial das ervas medicinais e de material para confecção de artesanato – em 70% das unidades produtivas encontramos pessoas que têm a venda do artesanato como uma das principais fontes de geração de renda.
O levantamento traz, ainda, os principais problemas, desafios e demandas para o incremento do plantio no território guarani: ataque de animais, tanto de formigas e galinhas como animais silvestres como a saracura; necessidade de insumos, adubos e ferramentas e falta de espaço para ampliação das roças – o processo demarcatório da TI Tenondé Porã está em estágio avançado, mas muitos aguardam o processo de desintrusão – que é a retirada dos não indígenas que ocuparam o território antes da demarcação – para aumentar a área plantada.
A agrobiodiversidade inclui pelo menos 190 espécies, entre hortaliças, culturas anuais e perenes, arbustivas e arbóreas. A ampla diversidade de variedades presentes nos roçados garante maior resiliência ao sistema tradicional guarani de produção frente a adversidades climáticas e ambientais. E ainda a variedade de sementes enriquece os plantios e fornece grande variedade nutricional e medicinal de alimentos.
Na aldeia Kalipety há cerca de 50 variedades de batata-doce, resultado de um trabalho de resgate e troca de sementes realizado pela liderança da aldeia. Também ali são encontradas dez variedades de milho-verdadeiro e mandiocas – presentes também na Tenondé-Porã. A aldeia Tape Mirĩ possui diversidade de bananas,e a Tekoa Porã é guardiã de algumas variedades de feijão.
No território há grande disponibilidade de manivas de mandioca, em especial devido às roças da aldeia Tenondé-Porã. A Kalipety ocupa posição importante na distruibção de sementes de milho, feijão e ramas de batata doce, superando aldeias no Paraná – tradicionalmente região de referência em variedades guarani.
O estudo aponta, dentre várias conclusões, que a agricultura no território tem incorporado técnicas de manejo agroecológico de modo a incrementar sua produção e recuperar áreas degradadas por ocupação não indígena; que é possível manter características tradicionais de plano e ao mesmo tempo incorporar inovações técnicas, tendo como resultado fartura na produção, preservação do ambiente, aumento da biodiversidade e da qualidade do solo.
E destaca recomendações importantes para fortalecer os guarani no cultivo e no fortalecimento de seus territórios, tais como promoção de formações acesso a ferramentas; realização de levantamentos mais aprofundados sobre a agrobiodiversidade indígena; desenvolvimento de política de apoio à venda de artesanato guarani na cidade; maior alinhamento dos órgãos públicos municipais quando a direitos territoriais indígenas e seus processos administrativos em âmbito federal em demarcações e processos de licenciamento ambiental, fundamentais para que os guarani desenvolvam sua agricultura e garantam seu sustento por meio do território.
A Terra Indígena Tenondé-Porã possui Plano Turístico, primeiro aprovado pela Funai fora da Amazônia. As atividades estão suspensas por causa da pandemia. Mas tão logo seja possível ter segurança sanitária para esse tipo de ação, sugiro agendar uma ida até lá pra conhecer de perto não só a produção agrícola e a alimentação indígena, mas toda a riqueza de sua cultura.
Enquanto isso, assista, a seguir, ao vídeo de divulgação do Plano de Turismo da Terra Indígena Tenondé-Porã:
Edição: Mônica Nunes
Foto: Ligue os pontos – aldeia Kalipety/ Divulgação