Nas diversas reportagens e comentários nas redes sociais sobre a greve dos caminhoneiros, fala-se muito que a sua principal característica é o fato de ser “descentralizada”. Conceitualmente, considerando a teoria de redes, isto está equivocado. Os caminhoneiros parecem ter se organizado, na verdade, de forma “distribuída”, o que torna qualquer tipo de negociação extremamente difícil, ao mesmo tempo em que aumenta exponencialmente o impacto da mobilização.
Qual é a diferença entre um movimento descentralizado e um distribuído?
Para entender, temos de voltar até o início dos anos 60, quando o engenheiro de origem polonesa Paul Baran formulou o conceito de redes distribuídas de comunicação. Ele liderava uma equipe de consultores que recebeu a missão de pensar em como o sistema de comunicação dos Estados Unidos poderia ser resiliente frente a um ataque nuclear por parte da União Soviética. Lembrem-se que naquela época estávamos no auge da Guerra Fria.
Baran e sua equipe organizaram suas ideias em um memorando intitulado On Distributed Communications, que hoje é considerado um clássico. Eles analisaram os sistemas tradicionais de comunicação, que chamaram de “Centralizados” e “Descentralizados”.
O primeiro seria o menos resistente , na medida em que o fluxo de comunicação seria basicamente bidirecional, a partir de um núcleo central. Se este núcleo central é eliminado, o sistema para de funcionar. O segundo, descentralizado, seria mais resistente, mas ainda assim frágil, porque dependeria de um processo hierarquizado em que diversos núcleos centrais se encarregariam do fluxo de comunicação. Se um ou vários destes núcleos descentralizados são eliminados, o sistema como um todo é afetado.
Em uma analogia com nossa vida real, sistemas descentralizados são o retrato típico de um organograma de governo ou empresa, com seu presidente, vice-presidentes, diretores, gerentes, chefes de seção, analistas e por aí vai. Ou seja, a hierarquia típica que conhecemos, na qual os núcleos de poder são relativamente fáceis de identificar.
A inovação trazida por Baran foi a de introduzir o princípio da redundância nesta equação. Ele defendia que o sistema mais resistente seria o “Distribuído”, no qual nenhum ponto da rede teria uma prevalência específica sobre os outros. Na sua formulação, cada ponto, ou “nó”, é, em si, um receptor e um transmissor no processo de comunicação. De forma que, se um ou muitos são afetados, o sistema como um todo é capaz de resistir porque não existiria um fluxo único no processo de comunicação, o qual estaria distribuído por toda a rede. Não precisamos ir muito longe para ver que o sistema distribuído é, conceitualmente a gênese da internet (abaixo).
Esquema de sistemas de comunicação “centralizados”, “descentralizados” e “distribuídos”,
segundo Paul Baran. Note que os nós da redes (pontos negros) ocupam a mesma posição.
O que muda é a forma como se organizam
O que acontece agora é que, justamente graças ao poder da internet e a acessibilidade quase universal às redes sociais, indivíduos e grupos passaram atuar cada vez mais de forma também distribuída. E isto é um grande desafio para o modelo de organização hierarquizada ainda vigente na maior parte das sociedades modernas, que precisa reconhecer claramente líderes e movimentos e mobilizações para estabelecer algum tipo de diálogo e negociação.
Manifestações distribuídas e desafio à hierarquia
Mas e quando, em tese, qualquer pessoa com acesso à rede pode exercer esse papel de liderança em seus próprios canais individuais de conexão e fazer com que mensagens e pautas de reivindicação se distribuam de forma orgânica pelas diversas interfaces do tecido social? Isto parece ser exatamente o que vimos, pelo menos no começo da manifestação dos caminhoneiros.
Frente a essa nova realidade, as autoridades responsáveis pelo governo se veem frente à pantomima ridícula e inútil de negociar com pessoas que, na verdade, não lideravam nada, além de si mesmos e de seus grupos mais próximos. Mas que, nem de longe, falavam em nome do conjunto de manifestantes. Isso acaba gerando mais insatisfação entre os membros do sistema distribuído que conforma a rede de caminhoneiros.
Um segundo movimento do governo e analistas diversos tem sido o de alegar que esta rede distribuída estaria “infiltrada” por grupos tentando “manipular” os caminhoneiros, incluindo empresários fazendo locaute. O próprio uso do conceito de “infiltração” e “manipulação” mostra a dificuldade das autoridades de lidar com este fenômeno. Para tentar por um pouco de ordem e sentido em seu discurso, vendem a narrativa de que a manifestação só se mantém porque os caminhoneiros seriam uma espécie de massa de manobra de grupos organizados.
É inegável que devem mesmo existir grupos interessados em influir no que está acontecendo, para fazer valer seus próprios interesses políticos e/ou econômicos. Mas daí a infantilizar os caminhoneiros, tratando-os como indivíduos incapazes de perceber o seu próprio papel individual nesse processo, e portanto presas fáceis de manipuladores, mostra que esse governo ainda não aprendeu a lição.
O fenômeno da emergência de formas distribuídas de manifestação social chegou no Brasil, de maneira disruptiva, em 2013 e, na verdade, nunca mais parou. Basta lembrar do movimento dos estudantes secundaristas de 2016, quando manifestações acontecerem em escolas públicas e privadas em vários pontos do país, em grande medida à margem dos processos tradicionais de organização estudantil.
Eu mesmo acompanhei um dos grupos em São Paulo, literalmente dentro de uma escola pública estadual, e vi como não havia uma única liderança claramente identificável, mas um conjunto de estudantes que se auto-organizavam de forma distribuída e assumiam diferentes papeis de acordo com as necessidades do momento. Do lado de fora da escola, havia vários jornalistas querendo entrevistar o “líder” ou “porta-voz” daquele núcleo de estudantes.
Eles coletivamente tomaram a decisão de que ninguém poderia falar em nome deles, mas reconheciam que era importante passar sua mensagem para a imprensa. Daí organizaram uma entrevista coletiva, na qual todos falavam de forma coordenada em uma espécie de jogral, que dificultava identificar um líder específico. Uma situação completamente diferente de quando eu mesmo participei do movimento estudantil, em meados dos anos 80, quando cada grupo de estudantes era fortemente vinculado ao partido A, B ou C.
Movimentos distribuídos surgem e, normalmente, se desinflam rapidamente, na medida em que a linha de interesse comum que uniu os diversos nós da rede se dissipa ou muda de direção. Será interessante ver como isto se dará com a Greve dos Caminhoneiros. Mas este é um fenômeno que veio para ficar e que será cada vez mais o modelo prevalente de manifestações sociais e políticas.
Novamente, fica o desafio para governos e líderes de estruturas hierárquicos aprenderem como identificar esses fluxos da sociedade e dialogar com eles – já que não acredito que seja possível “neutralizá-los” -, antes que se transformem em tsunamis.
Foto: Agência Brasil
Dialogar parece a solução ideal, sempre que dois ou mais discordam, mas impossível quando uma das partes se recusa a ouvir ou falar, impedindo que outros ouçam e falem.