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Líbano, refugiados e o verdadeiro sentido de viver

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Este texto foi publicado originalmente em 15/4/2015 no blog do projeto Think Twice Brasil, de Gabriele Garcia e Felipe Melo. Os dois jovens viajaram durante um ano pela Ásia e África “em busca de pessoas que são agentes de transformação e trabalham para melhorar a vida do próximo”. Foi transformador para eles e para quem os acompanhou pelo blog e o Facebook. Na semana passada, convidei-os para escrever sobre a convivência com refugiados. Eles adoraram a ideia, mas estavam de malas prontas para voltar ao Brasil – acabam de chegar! -, então, sugeriram que publicássemos este post comovente sobre a passagem do casal pelo Líbano. Um presente lindo para nós, do Conexão Planeta, e seus leitores. – Mônica Nunes
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Na foto que abre este texto, creche em Shatila (campo de refugiados no Líbano) para crianças sírias e palestinas. Na foto acima, estudantes de uma escola pública em Bekaa, que acolhe crianças sírias na parte da tarde.

 

Eu ainda estou em dúvida se passamos pelo Líbano ou se me enganaram e na verdade era o Brasil. A identificação foi tanta que fica até difícil explicar.

Pra mim e para o Fê (Felipe, meu namorado) – que nos últimos meses aprendemos ainda mais a valorizar gestos generosos e sorrisos despretensiosos -, o Líbano deixou a impressão de ser aquele abraço aconchegante, que acolhe e acalma o coração, sabe?

Graças à nossa amiga querida, Silvia Prada, tivemos o privilégio de conhecer a sua tia Helen, uma brasileira que vive em Beirute há mais de quatorze anos e, logo de cara, aceitou cuidar de mais dois sobrinhos por uns dias.

O Líbano chama a atenção pelo charme das paisagens, pela gentileza das pessoas e por carregar marcas profundas deixadas por conflitos armados. Pra se ter ideia da dimensão do que conto, hoje o país abriga quase dois milhões de refugiados, entre sírios e palestinos, além de ainda apresentar uma aparente desigualdade social entre os próprios libaneses.

Com a ajuda de Helen, pudemos vivenciar o país e descobrir histórias de fé, esperança e dedicação.

A primeira delas foi em um bairro pobre de Beirute, onde a irmã Aida, uma freira da Igreja Católica, está à frente do Centre Social Des Soeurs du Bon Pasteur, que oferece aulas extracurriculares para mais de 120 crianças, incluindo libaneses e refugiados da Síria e do Iraque. Helen contribui com arrecadações e doações que ajudam a manter a iniciativa.

A irmã Aida nos recebeu com um ar sereno que só se encontra em seres mais evoluídos e nos fez entender o sentido literal da palavra compaixão. Ela, católica, dedica-se integralmente a educar crianças sírias, cuja maioria é muçulmana.

Não tem nada mais humilde que reconhecer a existência do outro, respeitá-la e trabalhar pela dignidade de quem não tem absolutamente nada material para oferecer em troca. Eu gosto muito de uma frase que diz “o seu caráter se mede pela forma como você trata aqueles que não te trazem nenhum beneficio”.

Mas, mais do que isso, a irmã Aida nos mostrou que a prática da religião, seja ela qual for, quando nos faz instrumentos semeadores de paz, amor, generosidade e simplicidade é a verdadeira manifestação de Deus por meio de nós. Qualquer coisa que fuja disso e nos faça apoiar atos discriminatórios, preconceituosos e intolerantes não é religião, mas, sim, a manifestação do ego e da vaidade. Quem compreende genuinamente o sentido de Deus, só trabalha pela valiosa dignidade que é poder ser quem você é, permitindo que o outro seja ele também.

Mas essa lição foi só o aquecimento para nos prepararmos pra tantas outras que vieram em seguida.

No dia seguinte visitamos um campo de refugiados palestinos, Shatila, que fica em Beirute. O campo surgiu logo após o início da guerra de 1948 (quando Israel se apropriou de terras palestinas) e, hoje, é um bairro da cidade. São cerca de trinta mil palestinos vivendo lá com escassez de recursos, falta de oportunidades de trabalho e estudo e cultivando a esperança de, um dia, voltarem pra casa.

libano-e-um-novo-sentido-de-viver-6 Conhecemos o projeto Dreams of Refugee Association, criado por cinco jovens palestinos que nasceram no campo e perceberam que podiam fazer muito mais pelo seu povo. Com a ajuda da própria comunidade e de doações vindas de fora, Tarek (na foto ao lado, ele aparece com Fê, em frente à creche, em Shatila) e os amigos fundaram um jardim de infância que hoje acolhe mais de 230 crianças, inclusive sírias, que vieram com suas famílias depois do início da guerra, em 2011. Assim como a Irmã Aida, Tarek reforça que “fazer o bem, sem olhar a quem” é a única forma de prosperar. Hoje, graças a essa iniciativa, crianças sírias e palestinas estudam e convivem em harmonia.

Foi ele também o responsável por um dos relatos mais emocionantes que ouvi até hoje, ao contar uma história que me enche os olhos de lágrimas toda vez que eu me lembro.

Quando falava sobre todas as atividades de sucesso do projeto, ele disse que, além de tudo, ainda haviam montado a maior chave do mundo. “Maior chave do mundo? Como assim?”. Ele seguiu explicando que, quando começou a guerra em 1948, não sobrou outra opção ao povo palestino do que não sair de suas casas e esperar os ânimos se acalmarem. Era uma questão de vida ou morte.

Foi quando milhares de palestinos, incluindo o avô de Tarek, trancaram as suas casas e fugiram ao lado das famílias com a roupa do corpo. Eles esperavam que aquilo acabasse logo e guardaram as chaves de casa para a hora certa de voltar.

Hoje, em 2015, a hora certa ainda não chegou e – em homenagem aos milhões de palestinos obrigados a reconstruírem suas vidas com a esperança de um dia recuperá-las de volta -, foi montada uma chave gigante a partir das antigas chaves das casas deixadas para trás, que continuam guardadas esperando o momento de abrir a porta para um futuro diferente.

Esse relato emocionado do Tarek se tornou, pra mim, a forma mais pura e verdadeira de definir um refugiado: luta e esperança. É esse mesmo relato que me faz refletir sobre o que leva chefes de Estado a se colocarem contra a vida de milhares de pessoas com o intuito, único e exclusivo, de manter e aumentar o poder. Gente, nossa casa é o nosso mundo!! Parece utópico, mas se cada um parasse pra pensar nisso, teríamos uma chance considerável de encarar a segregação social, racial, religiosa e territorial de outra perspectiva, mais humana e espiritual.

Mas, quando a gente ameaça desanimar com a crueldade do ser humano, conhecemos mais projetos e mais pessoas que nos lembram que a nossa essência é amor, mesmo que alguns não o tenham praticado com muito entusiasmo ainda.

Foi nessa onda que conhecemos a querida Nimat Bizri, uma senhora cheia de energia e que representa com graça e leveza a força da mulher.

Há muito tempo, Nimat se envolve com projetos sociais, mas foi há três anos que ela deu início ao seu maior legado. Sensibilizada pela situação de milhares de crianças sírias que não param de chegar ao país, ela articulou com a prefeitura da cidade de Bekaa a utilização de escolas públicas para atender a essas crianças.

Durante a manhã, os espaços recebem alunos libaneses e, à tarde, chegam os sírios. Os custos dessa iniciativa, como salário dos professores, roupa e material escolar, são integralmente patrocinados por Nimat, por meio de doações que ela arrecada. O valor total anual para manter uma escola – atualmente são três – é de 150 mil dólares. São quase dois mil alunos, de sete a 18 anos, beneficiados por essa ação, que recebem mochilas com livros, cadernos, canetas, roupas e sapatos e não precisam pagar absolutamente nada para frequentar a escola.

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Estudantes de escola pública em Bekaa, que acolhe crianças sírias na parte da tarde

Na companhia de Nimat e Helen, visitamos as três escolas, assistimos a um ensaio do coral, interrompemos as aulas de história e brincamos de ciranda no recreio.

Mas, como toda mulher inspiradora, Nimat virou bicho quando viu uma das meninas fora da aula, coletando o lixo do pátio, e suspeitou que sua mãe, funcionária da escola, estava instigando a filha a fazer “bicos” para complementar a renda da família. Nimat ficou vermelha e, com a voz embargada, disparou a falar com firmeza alguma coisa em árabe para a suposta mãe negligente. Eu não entendi nada, mas pude sentir a vibração e a indignação de uma mulher que, assim como eu e tantas outras pelo mundo, acredita que a educação é a única saída para um futuro longe da pobreza.

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Homenagem à Helen (à esquerda) e Nimat (à direita) pela contribuição e visita à escola pública em Bekaa

Eu e Fê voltamos dessa experiência impressionados com a energia e a disposição de pessoas como Nimat, irmã Aida, Tarek e Helen, que se dedicam verdadeiramente a soprar novos ventos na vida de quem vive sem muitas expectativas. Cada um à sua maneira.

O Líbano, através de cada uma dessas diferentes pessoas, nos revelou o verdadeiro sentido de SERVIR.

Em um país cheio de contrastes, misturas e desigualdades, são pessoas comuns que, contrariando a rigidez e insensibilidade de quem só busca o poder, que se colocam a serviço de quem delas precisa, com a humildade e a generosidade necessárias. Levam um sopro de dignidade para quem não tem nada além de esperança.

Saímos do Líbano com a sensação de que sempre podemos fazer mais e, inspirados por eles, concluímos que servir ao próximo é a melhor e mais simples maneira de descobrir o melhor de nós. E o nosso melhor é a chave pra abrir a porta de muita gente, inclusive a nossa.

PS: Quem quiser contribuir com esses projetos nos escreva pelo nosso site.

Abaixo, mais fotos da nossa passagem pelo Líbano.

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Estudantes de escola pública em Bekaa, que acolhe crianças sírias na parte da tarde

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Eu e as professoras da creche em Shatila

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Uma rua de Shatila, campo de refugiados sírios e palestinos em Beirut

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